31 de agosto de 2010

CRISTOLOGIA - A MORTE DE JESUS - INTERPRETAÇÃO SOTERIOLÓGICAS (aula 13)

SOTERIOLOGIA

É o estudo da salvação humana.

A palavra é formada a partir de dois termos gregos Σοτεριος [Soterios], que significa "salvação" e λογος [logos], que significa "palavra", ou "princípio".

INTRODUÇÃO:
A morte de Jesus na cruz representou para os seus discípulos o fim e o fracasso de sua missão. Eles pensavam ter encontrado nele o rei que nunca mais poderia ser derrubado. Mas viram-se no papel de seguidores de um executado.

Os discípulos estavam derrotados, desnorteados e com muito medo.
A ressurreição deu aos discípulos a certeza de que Jesus era Rei, apesar de tudo do que tinha ocorrido. Mas só aos poucos eles foram compreendendo o sentido da cruz.

COMO EXPLICAR O SENTIDO DA ENCARNAÇÃO E O DA CRUZ?
Para entender o sentido da cruz, os discípulos dispunham da Escritura (Antigo Testamento) cujas imagens procuravam interpretar sob os acontecimentos ocorridos.

Face a isto ganhou uma enorme importância o texto de Isaias sobre o “servo do Senhor” (cf Is 52,13-53,12).

Este texto pertence ao segundo livro de Isaias (40-55) que foi escrito durante o exílio da Babilônia (598 - 538 a.C.) e registra a memória de fé e esperança do povo judeu, empobrecido e escravizado. Em meio à realidade de miséria e opressão, pessoas simples se solidarizam umas com as outras para superar o desafio da sobrevivência e do sofrimento.

Mas foi neste texto que os discípulos de Jesus e as primeiras comunidades cristãs encontraram o sentido da morte de Jesus na cruz. Nas cartas do Novo Testamento (NT) encontramos várias citações que validam esta afirmação. (2Cor 5,15; Rm 6,10; 1Pd 3,18; Hb 7,27; 9,12; 10,10).

Este fato acarretou no decorrer do desenvolvimento histórico do cristianismo, no Ocidente, um afastamento progressivo entre a vida de Jesus e sua morte na cruz, de tal modo que este processo produziu uma concentração cristológica sobre a cruz de Jesus, em detrimento do restante de sua vida.

A partir de então se desenvolveu uma reflexão soteriológica apenas concentrada na morte de Jesus. Ou seja, toda a problemática da salvação girava em torno do sentido da morte de Jesus Cristo.

Até os anos 1200 d.C desenvolveram-se varias teologias com diferentes interpretações sobre a morte de Jesus Cristo.
Podemos aglutiná-las em três categorias:


INTERPRETAÇÃO RITUAL: A TEOLOGIA DO SACRIFÍCIO EXPIATÓRIO
No primeiro milênio cristão, interpretaram a morte de Cristo como sacrifício expiatório: morreu na cruz para nos resgatar da morte, do pecado e do poder do diabo que nos mantinha escravos.

Tal libertação ocorreu de maneira onerosa, porque foi fruto da luta e da vitória de Cristo contra as forças do mal, a preço de seu sangue.

Esta onerosidade produziu a afirmação de que Cristo deu sua vida em “resgate”, isto é, como preço por ele pago para a libertação da humanidade.

Esta interpretação era inspirada na experiência ritual e cúltica dos sacrifícios no templo de Jerusalém.

Existiam diversos tipos de sacrifícios, sendo de destacar os holocaustos, os sacrifícios de comunhão, os sacrifícios expiatórios e as ofertas.

Dentre todos esses, destacava-se o sacrifício expiatório chamado “Tamid” (cotidiano) que era oferecido no Templo, pela manhã e à tarde, diariamente sem interrupção, cuja finalidade era obter o perdão pelos pecados (cf. Ex 29,38; Nm 28,3).

O evangelho de João designa Jesus como o “Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29b), numa clara apropriação do “Tamid” relido como chave interpretativa do sacrifício de Cristo.

Porém, mais importante que o “Tamid” era a liturgia sacrifical do “Yom Kippur” (“Dia da Expiação”), que acontecia uma única vez ao ano (cf. Lv 16, 1-34; Nm 29, 7-11).

Neste dia, o sumo sacerdote, fazia uma espécie de procissão, trazendo sobre os ombros um grande manto, formado de muitíssimos pedaços de pano. Cada um desses pedaços representava um tipo de pecado em particular.

Desse modo, o sumo sacerdote levava simbolicamente todos os pecados do povo.

Chegando ao pátio dos sacerdotes, o sumo sacerdote, e somente ele, oferecia um novilho em sacrifício, sobre o altar, por seus pecados e pelos pecados dos sacerdotes. Em seguida, oferecia um bode pelo pecado do povo.

Depois adentrava o santuário, levando consigo o sangue dos animais imolados, e penetrava até o "Santo dos Santos", uma sala totalmente escura que guardava a "Arca da Aliança" e onde estava a presença de Deus.

Somente o sumo sacerdote podia entrar nessa sala, e assim mesmo só uma vez por ano, no dia de "Kippur". Lá dentro ele jogava, por aspersão, o sangue dos animais imolados sobre o propiciatório e obtinha, assim, o perdão para todo o povo.

O rito do bode expiatório completava a celebração. Dois bodes eram apresentados ao sumo sacerdote, que tinha em suas mãos duas pedras. Uma trazia a inscrição: “para Deus” e a outra: “para Azazel”.

O bode sorteado para Deus era sacrificado e seu sangue derramado sobre a “Arca da Aliança”, no “Santo dos Santos”.

O outro bode era levado para o deserto depois do sumo sacerdote ter rezado sobre ele, impondo-lhe as mãos. Deste modo, carregado dos pecados do povo, era destinado à morte no deserto, lugar do demônio.

Ainda no AT, encontramos a misteriosa figura do “Servo do Senhor”, presente no livro do Deutero-Isaías, único texto do AT que utiliza a imagem de uma vítima humana oferecida em sacrifício de expiação.

À semelhança dos animais oferecidos no dia do “Yom Kippur”, o “Servo de Senhor” também carrega sobre si os pecados do povo, e morre para alcançar o perdão divino para todos: (Is 53,3-5.8-11).

Dos evangelhos se deduz que a comunidade compreendeu o “Mistério Pascal” de Jesus à luz da missão do Servo do Senhor: “Pois o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão” (Mc 10,45).

Com a efusão de seu sangue, Cristo estabeleceu uma “Nova Aliança” entre a humanidade e Deus (cf. Mt 26,28). Ele, Jesus, é o “Cordeiro de Deus”, vítima perfeita, sem mancha que expia definitivamente o pecado do mundo (cf. Jo 1, 29; Hb 9,1-12.24-28).

A dignidade incomensurável daquele que se ofereceu e o amor ilimitado que o sustentou conferem um valor absoluto e definitivo à expiação de Cristo.

A morte de Jesus obtém de modo definitivo a salvação que as outras vítimas oferecidas não tinham conseguido.

Esperavam os discípulos que a morte de Cristo cessaria definitivamente o sistema de sacrifícios do Templo de Jerusalém (cf. Hb 8,13), e o fato de assim acontecer deveu-se conforme a fé que tinham na veracidade de sua interpretação.

Do fato da expiação concluíam que ninguém podia salvar-se pelas próprias obras, pois se não fosse assim Cristo não precisaria ter morrido (cf. Gl 2,21), e que o único caminho da salvação era aceitar mediante a fé o sacrifício expiatório de Cristo na cruz (cf. Rm 3,19-31).

Nenhum sacrifício humano conseguia por si mesmo aplacar definitivamente a ira divina. A encarnação criou a possibilidade de um sacrifício perfeito e imaculado que pudesse ganhar a total complacência de Deus.

Jesus aceitou livremente ser sacrificado para representar todos os homens diante de Deus e assim conquistar o total perdão divino. A ira divina como que se extravasou na morte violenta de Jesus na cruz e se aplacou. Jesus suportou como expiação e castigo pelo pecado do mundo.

A teologia patrística introduziu ainda na questão da expiação a teoria do direito do diabo. Assim, para Orígines, a morte de Cristo foi o resgate pago a Satanás que havia adquirido direitos sobre o homem depois da queda:


INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: A TEOLOGIA DA SATISFAÇÃO
A teologia da satisfação tem sua origem na Idade Média com Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), e por muito tempo permaneceu o conceito chave, isto é, o conceito capaz de resumir em si todos os aspectos da redenção.

A intenção de Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) tinha sido a de provar que a obra de Cristo foi conseqüência de causas necessárias, para demonstrar que essa obra tinha de acontecer justamente da maneira como aconteceu.

Em linhas gerais, o seu raciocínio dizia o seguinte: pelo pecado do homem, dirigido contra Deus, a ordem da justiça foi infringida de uma maneira infinita, e Deus foi infinitamente ofendido.

Na base dessa conclusão está a idéia que a gravidade da ofensa se orienta no ofendido, ou seja, o peso da ofensa varia de acordo com o objeto da ofensa.

Como Deus é infinito, também a ofensa cometida contra ele pelo pecado da humanidade tem um peso infinito.

O direito violado precisa ser restabelecido, porque Deus é um Deus da ordem e da justiça, ou melhor, ele é a própria justiça.

Como a medida da ofensa é infinita, exige-se também uma reparação infinita. Ora, o ser humano não é capaz de oferecer uma reparação infinita, porque como ser finito, ele sempre só pode oferecer algo que será finito. A sua força destruidora ultrapassa sua capacidade de construir. Por isso haverá sempre uma distância infinita entre todas as reparações tentadas pelo ser humano e o tamanho de sua culpa, ou seja, um abismo que ele nunca será capaz de superar.

Qualquer gesto de desagravo só há de provar-lhe a sua incapacidade de fechar o abismo que ele mesmo abriu.

Isso significa que a ordem permaneceria destruída para sempre e que o ser humano continuaria eternamente preso ao abismo de sua culpa?

Nesse ponto, Santo Anselmo aponta para a figura de Cristo. A sua resposta afirma, então:
Deus mesmo corrige a injustiça; mas ele não recorre simplesmente à decretação de uma anistia (apesar de ter essa possibilidade), porque esta não superaria intrinsecamente o acontecido. Então o Deus infinito se torna ele próprio ser humano, e como ser humano que faz parte dos ofensores, mas que possui também o poder de reparação infinita que é negada ao ser humano comum, ele presta o desagravo exigido.

Dessa maneira, a salvação se realiza totalmente pela graça e restabelece, ao mesmo tempo, toda a ordem de direito. Com esse raciocínio, santo Anselmo pensa ter dado uma resposta definitiva àquela pergunta difícil formulada em “Cur Deus homo?”, ou seja, a pergunta do porquê da encarnação e da cruz.

A sua reflexão marcou profundamente o segundo milênio da cristandade ocidental que estava convencida de que Cristo precisou morrer na cruz para reparar a ofensa infinita que tinha sido cometida pelos homens, e para restabelecer a ordem violada.

A redenção tornou-se, assim, sinônimo de "satisfação" da justiça divina, no sentido de que a morte de Jesus na cruz foi o preço do "resgate" da humanidade, pago, não ao diabo, como se dizia, em certas orientações, na teologia patrística, mas a Deus, para satisfazer a sua justiça e torná-lo propício aos homens.


INTERPRETAÇÃO MORAL: A TEOLOGIA DO MÉRITO
Nos séculos que se seguiram, a teoria de Santo Anselmo alcançou ampla aceitação no ocidente cristão, embora nunca tenha sido assumida como dogma pela Igreja.

Entretanto, ao longo do tempo, várias modificações foram introduzidas à soteriologia da satisfação. A mais significativa foi promovida por São Tomás de Aquino, que se opôs à idéia de que a encarnação era necessária à redenção.

Segundo São Tomás, a encarnação era bastante “apropriada” (conveniente), algo razoável e adequado para Deus realizar, mas não obrigatoriamente necessário. A encarnação só pode ser considerada necessária numa única situação: enquanto plena satisfação pela ofensa cometida contra Deus.

Embora reconheça a necessidade de reparar a ofensa feita a Deus, São Tomás coloca como objetivo principal da redenção a restauração do próprio ser humano. A misericórdia divina é o primeiro e principal motivo da redenção:
A prioridade do amor na soteriologia tomista estabelece uma nova chave hermenêutica para a redenção: o “mérito”.

Em razão do amor com que Jesus se entregou à morte, mereceu para si mesmo a ressurreição, e para a humanidade, a salvação. Dessa forma, a vida e a morte de Cristo foram “meritórias”.

A salvação é a recompensa que Jesus obteve para nós. Se Jesus não tivesse renunciado à sua glória divina, se não tivesse sido fielmente obediente à vontade do Pai, a humanidade não obteria a salvação.

Afirmar que Cristo mereceu nossa salvação com sua paixão e morte equivale a dizer que estas foram as verdadeiras causas de nossa redenção pelo valor moral que têm diante de Deus.

As interpretações soteriológicas fundamentadas nas categorias de expiação, satisfação e mérito produziram uma grande devoção popular à cruz de Jesus Cristo.

Porém uma devoção que desvinculou a cruz de seu contexto histórico. E aí se encontra um dos grandes danos que essa devoção produziu, e ainda produz, à espiritualidade cristã.

Desvincular a cruz de seu contexto histórico significa reduzi-la somente a símbolo da morte expiatória de Jesus Cristo.

O resultado é a redução da pessoa de Jesus ao papel de vítima expiatória e compensatória.

Desse modo, Jesus é privado de sua existência histórica.

As soteriologias tradicionais mutilam Jesus, fazendo dele apenas uma vítima para sofrer.

Transformam especificamente a dor de Cristo na cruz a causa da salvação da humanidade, além de transmitir uma imagem vingativa e colérica de Deus: somente o sofrimento físico do Filho é capaz de compensar a ofensa que a humanidade fez ao Pai.

A morte de Jesus é vista como a condição prévia para que Deus voltasse a amar a humanidade. Sem sofrimento não há perdão. Essa é a idéia de fundo que inspira toda uma espiritualidade centrada tão somente na dor.

Além disso, a dor provocada pelos sofrimentos é vista equivocadamente como méritos adquiridos diante de Deus; méritos que compensam os pecados cometidos.

Isso explica porque tantos Santos na história da Igreja usaram a criatividade para inventar instrumentos e ocasiões para sofrer. Era preciso buscar a cruz, o sofrimento diariamente, para compensar os pecados cometidos. A dor era o caminho real da salvação.


MEDO DE DEUS E SENTIMENTO DE CULPA

Medo de Deus, medo do inferno.

Um Deus implacável, sempre atento a punir com rigor os pecadores.
Esse discurso atemorizante norteou por muitos séculos a espiritualidade cristã.

Formou o inconsciente coletivo de muitas gerações de cristãos. E está ainda arraigado no íntimo de muitas pessoas.

É evidente que essa imagem de Deus criou uma espiritualidade do medo. Medo de ofender a Deus e de acabar no inferno.

Muitos cristãos foram verdadeiramente massacrados por essa angústia, que gerava, por sua vez, um escrúpulo exagerado e um mórbido sentimento de culpa, isto é, o pensamento fixo de que apesar das muitas penitências praticadas, não conseguiriam escapar da danação eterna.


BIBLIOGRAFIA

RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, São Paulo, Loyola, 2009.

RAUSCH, Thomas P., Quem é Jesus?, Aparecida-SP, Santuário, 2006.

NAKANOSE, S ; Paula Pedro, E, Como ler o segundo Isaias (40-55), São Paulo, Paulus, 2009

Parte do texto acima exposto foi extraído da apostila elaborada pelo Prof. Dr. Pe. José Roberto Palau do curso de Cristologia, do Instituto de Teologia e Filosofia Santa Terezinha (ITEFIST), São José dos Campos, 2009.

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