27 de setembro de 2010

CRISTOLOGIA - AUTOAFIRMAÇÕES E TÍTULOS DE JESUS (AULA 15)


INTRODUÇÃO
Quem é Jesus de Nazaré?

Esta é uma pergunta que aparece sempre na vida dos seguidores daquele Mestre de Nazaré.

Fundamentados na experiência pascal e em Pentecostes é que a fé em Jesus e o aprofundamento na compreensão de sua identidade se desenvolveram.

As primeiras comunidades apresentaram vários caminhos para a aproximação da rica e complexa realidade de Jesus usando elementos tomados do Antigo Testamento, das tradições judaicas e do helenismo.

Trataremos, então, alguns desses títulos
- O Cristo-Messias
- O Servo de Iahweh
- O Homem Novo
- O Senhor
- O Filho do Homem
- O Filho


JESUS É O CRISTO-MESSIAS

Cristo-Messias significa “Ungido”.

Eram ungidos o rei, o sacerdote, enfim, pessoas com alguma missão ou tarefa especial em relação ao povo de Israel.

No Antigo Testamento a ação libertadora e salvífica de Iahweh está associada à vinda de um Messias-rei, da casa de Davi.

No tempo de Jesus era predominante a interpretação político-nacionalista da figura do Messias. Daí a reserva de Jesus em relação à utilização desse título.

Ele não se afirma Messias, mas não rejeita o título, sempre corrigindo seu significado, principalmente quando lhe é dado por doentes e pelos discípulos.

Depois de sua morte-ressurreição ficou claro o messianismo de serviço de Jesus.

O título mostra a continuidade entre a expectativa de Israel e a Igreja
Ele é o esperado, o salvador de toda a humanidade, é aquele que supera as expectativas do coração humano.


JESUS É O SERVO DE IAHWEH

Ele viveu toda a sua vida em entrega filial ao Pai e em amor-serviço e solidariedade aos irmãos.

Sua entrega, em consonância com o Servo dos cantos de Isaías, foi feita:
“por amor a nós, em proveito nosso, em nosso lugar”.


JESUS É O HOMEM NOVO

Sonhamos com um ser humano melhor que o atual. Sentimos que existir o ser humano real, histórico e o ser humano ideal, desejado, sonhado.

Também os gregos tinham esta ideia: o homem originário, proveniente do divino, que era modelo para a criação do homem real.

Também no judaísmo, influenciado pelo helenismo, interpretou-se a criação do homem em Gênesis com a existência do Adão perfeito, criado à imagem de Deus e o Adão terrestre, imperfeito, feito de argila.

Este contexto cultural será retomado no Novo Testamento.

Paulo afirma que o verdadeiro homem, o homem que vem de Deus é o segundo Adão, Jesus Cristo: “O primeiro homem tirado da terra é terrestre.

O segundo homem vem do céu” (1 Cor 15, 47) e “...Adão, que é figura daquele que devia vir...” (Rm 5, 14b)

Há, para Paulo, “dois Adões”, dois modos de existir: o “corpo psíquico”, do Adão pecador, incapaz de doar vida, e o “corpo espiritual”, próprio de Jesus Cristo, fonte de vida para todos: “o último Adão tornou-se espírito que dá a vida” (1 Cor 15, 45b)

Jesus é a verdadeira imagem de Deus, e o cristão é chamado a assemelhar-se a essa imagem, morrrendo ao homem velho para poder viver a vida do homem novo.

Mas, hoje nós somos a imagem do primeiro ou do segundo Adão?

Paulo nos esclarece: “Assim, como trouxemos a imagem do homem terrestre, traremos também a imagem do homem celeste” (1 Cor 15, 49).

Estamos em transformação, do homem que trouxemos para o homem que traremos.


JESUS É O SENHOR

Com este título eclode a confissão de fé na condição divina de Jesus.

O nome de Deus no Antigo Testamento é traduzido para o grego pelo termo “Kyrios” (Senhor).

As primeiras comunidades já confessam que Jesus é o Senhor.

Sua intenção é clara: diante da multiplicidade de senhores, os cristãos confessam um único Senhor: Jesus, o Cristo. Ficam invalidados todos os outros senhores, com sua falsa intenção de divinidade.

O senhorio de Jesus é escatológico, mas já incide na vida da comunidade.
A vida cristã é vivida em relação ao Senhor Jesus: “no Senhor”, fórmula utilizada inúmeras vezes por Paulo em suas cartas, significando que a vinculação ao Senhor é para ser vivida no cotidiano, na aceitação desse senhorio.

Por isso o hino cristológico de Fl 2, 6-11 exprime a fé na origem divina de Jesus, no seu esvaziamento, assumindo todas as consequências da morte de cruz, na sua exaltação. O hino afirma ao final: “que toda língua proclame: Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai”


JESUS É O FILHO DO HOMEM

É uma expressão que aparece 80 vezes no Novo Testamento, sempre utilizada por Jesus para autodesignar-se (exceto em At 7, 56)

É uma tradução para o português de “Bar nasha” ou “ben adam” que quer dizer simplesmete que alguém é humano, é homem.

Aparece frequentemente no Antigo Testamento com este significado.
Dois autores bíblicos empregam o termo num sentido diferente do comum: Ezequiel (cap 34) e Daniel (cap 7).

Deus chama o próprio Ezequiel de “filho do homem” quando lhe dá uma missão.
Escrevendo por ocasião do exílio na Babilônia, Ezequiel inverte a noção do Messias guerreiro que liberta, para a ideia de Príncipe da Paz, de Bom Pastor.

O fato de ser simplesmente homem não o impede de ser testemunha e sentinela de Deus, anunciando a verdadeira aliança e a verdadeira face de Deus, bom pastor por excelência.

Em Daniel aparece a figura apocalíptica do Filho do Homem, descrevendo um sonho.

O texto deixa na sombra a identidade do Filho do homem, mas lhe atribui qualidades que iluminam seu ser e sua função.

O personagem não surge da terra, do abismo primitivo como os outros seres, mas vem por sobre as nuvens, tem origem no céu.

Ele surge durante o julgamento final, e recebe de Deus a soberania, torna-se o substituto de Deus no governo do mundo.

O Filho do Homem é um personagem escatológico, e esta figura funde-se com outro personagem: o Messias sempre aguardado.

O Filho do Homem pertence a dois mundos: o mundo de Deus, do qual ele é o Revelador, e ao mundo dos homens, onde traduz em linguagem humana a eterna intenção de Deus.

Jesus emprega a expressão com três significados diferentes:

1- Ele é o Filho do Homem que atua em sua existência terrena em meio aos outros homens, vivendo as limitações dessa existência: “Veio o filho do homem que come e bebe, e dizem: eis aí um glutão e beberrão” (Mt 11,19)

2- Ele é o Filho do Homem que realiza a missão do Servo: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos... Ser morto e ressuscitar” (Mc 8, 31); “O Filho do Homem está sendo entregue às mãos dos pecadores” (Mt 26, 45)

3- Ele é o Filho do Homem que virá no final dos tempos, com glória e poder, para julgar, o que o coloca na perspectiva própria de Daniel: “E quando vires o Filho do Homem subir aonde estava antes?” (Jo 6, 62); “Quando o Filho do Homem vier em sua glória...então se assentará no trono de sua glória” (Mt 25, 31)

O Filho do Homem evoca uma origem celeste enquanto essa tiver uma correspondente terrestre, e toma forma concreta na encarnação, na humilhação, na existência do Servo.

É a encarnação que estabelece que a escatologia gloriosa não despreza a história concreta dos homens.

O Jesus da história é o Filho do Homem que conduz a humanidade, com toda limitação e sofrimento, à glória apocalíptica de que fala Daniel.

A vocação do Filho do Homem não é diferente daquela do Servo.

Jesus é o Filho do Homem porque sendo de condição divina possui uma existência histórica.

O título Filho do Homem é apenas formal enquanto não assumir carne e sangue. Ele se manifestará na Parusia, quando a dualidade entre o projeto de Deus e o concreto da história for superada, quando a identificação de Jesus com a humanidade for manifesta, no julgamento.

O julgamento é, na verdade, a revelação da identidade entre Jesus e os homens.

Título de majestade, o Filho do Homem define a missão de Jesus, enquanto realiza na história uma intenção divina: a unidade dos homens entre si e com o Filho de Deus


JESUS É O FILHO

O título “Filho” é diferente do título “Filho de Deus”. Este último tem origem na teologia política do antigo Oriente.

O rei era visto como tendo origem divina.

Em Israel essa “geração” era tida como “eleição”.

A simples palavra “Filho”, nos Evangelhos, nós só encontramos na boca de Jesus.

O Evangelho de João – na qual a palavra aparece 18 vezes – é que melhor aprofunda o significado da filiação única de Jesus: ela implica uma íntima e perfeita comunhão de conhecimento, de vontade e de ser com o Pai.

O Filho identifica toda a sua atividade com a atividade do Pai: “O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer; tudo o que este faz o Filho o faz igualmente” (Jo 5, 19).

Ele tem a vida em si: “Como o Pai tem a vida em si também concedeu ao Filho ter a vida em si” (Jo 5, 26). Possui comunhão de conhecimento: “como o Pai me conhece eu conheço o Pai” (Jo 10, 15)

Ele está no Pai como o Pai está nele: “Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós.” (Jo 17, 21)

A vontade do Filho constitui uma unidade com a do Pai, como nos é apresentado no Jardim das Oliveiras: “não a minha vontade, mas a tua seja feita.” (Lc 22, 42)

De tal modo é íntima e total a comunhão entre Pai e Filho que Jesus pode dizer: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30)

21 de setembro de 2010

BÍBLIA - DEUTERONÔMIO (aula 10)

O livro do Deuteronômio sempre foi muito importante para o judaísmo. Nele está o Shemá (6, 4-9), que os judeus recitam diariamente e é o centro do livro.

É um dos livros mais citados no NT ao lado de Isaías e Salmos, além de influenciar a eclesiologia de Paulo e a perspectiva de Deus como um Pai amoroso.

Para os alexandrinos, o livro é uma atualização da Lei (17,18) contida no Código da Aliança (Ex 20-23).

É uma atualização da antiga aliança, procurando adaptá-la a novos tempos e situações.

Neste livro temos as últimas palavras de Moisés e o seu destino. É o grande conjunto do Pentateuco. Estamos na terra de Moab, no além Jordão, no último ano de marcha pelo deserto (1,1-3) antes da entrada na Palestina central.

O Deuteronômio foi colocado entre os acontecimentos importantes: de um lado, a libertação da escravidão no Egito, a aliança com Javé e a marcha pelo deserto (Ex, Num, Lv) – de outro, a posse de Canaã, a Terra Prometida (Js, Jz).

É preciso pois, que o povo aprenda a viver a liberdade.

O Deuteronômio é, portanto, um aprendizado, uma pedagogia da liberdade e da justiça, a fim de construir uma sociedade em aliança fiel com Deus que liberta e dá a vida para todos (4,40; 6, 24-25; 8, 1-5).

É um apelo de conversão ao povo que vai atravessar o Jordão e tomar posse da terra. Isso depende da fidelidade do povo a Javé.

O seu aspecto particular é a legislação fundada no decálogo (5, 1-21), confiada a Moisés para ser exposta ao povo.


ESTILO E GÊNERO LITERÁRIO:

O estilo utilizado no livro do Deuteronômio é marcado e diferente de qualquer outro livro do AT. Nele encontramos uma oratória fluente e solene, buscando atingir, comover, convencer e influenciar os ouvintes pelo sentimento.

Trata-se de uma obra cheia de vida, dentro de um gênero monótono (legislação). Encontramos três elementos: leis, narrativa e exortações.

Leis:
Apresentadas de modo caloroso, apelando para o bom-senso e sentimento, apoiando-se em argumentos que questionam diretamente a consciência (15,12-18).

Narrativas:
Falam de um passado, dirigindo-se ao presente, visando formar a consciência histórica que constrói o futuro (5, 1-3)

Exortações:
Se dirigem à liberdade e pedem uma decisão (28; 30)

Seu gênero literário é bastante complexo e resulta de uma confluência das instituições do tempo do reino dividido.

Temos sacerdotes (leis e instruções), profetas (oratória fluente e emotiva) e sábios (conselheiros perspicazes).


VISÃO PANORÂMICA:

A estrutura geral apresenta quatro grandes partes:

I. Introdução histórica e teológica (1-11)

II. Código Deuteronômico (12-16)

III. Ritos de conclusão da aliança (27-30)

IV. Apêndices (31-34)



I. Introdução Histórica e Teológica (1-11)
1. Primeiro discurso de Moisés (1,1-4,40)
2. Segundo discurso de Moisés (4,44-11,32)

II. Código Deuteronômico (12-26)
1. Relações com Deus: leis cultuais (12,1-16,17)

2. Relações com as mediações: leis sobre as autoridades (16, 18-18,22)

3. Tribunal superior no santuário para causas difíceis (17,8-13)

4. Situação das autoridades (17,14-18,22)

5. Relações sociais: leis civis (19, 1-21,19)
- Respeito pelo homem e pela vida (19,1-21,9)
- Direito familiar e social (21, 10-25,19)
- Respeito pela vida: animais (22, 22-23)
- Respeito pela vida: nas relações sociais (22,13-23,1)
- Critérios para pertencer à comunidade (23, 2-15)
- Respeito para com os pobres e necessitados (23, 16-24,22)
- Respeito pela dignidade, boa fama e lealdade para com o próximo (25, 1-16)
- Destruição de Amalec (25, 17-19)

6. Prescrições rituais e conclusão (26, 1-19)
- Os primeiros frutos (26, 1-11)
- O dízimo trienal (26, 12-15)
- Conclusão (26, 16-19)

III. Preparação e conclusão da Aliança (27-30)
1. Preparação e ritos da aliança (27)
- Pedras da lei com a legislação (27, 1-10) (27, 1-10)
- 12 maldições sancionando a infidelidade (27, 11-26)

2. Bênçãos (28, 1-14) e maldições (28, 15-68)

3. Terceiro discurso de Moisés (29-30)

IV. Apêndices (31-34)
1. De Moisés a Josué (31):
- exortação ao povo e eleição de Josué (31,1-8. 14-15.23); - livro da Lei para ser lido a cada sete anos (31, 9-13);
- introdução ao cântico de Moisés (31, 16-22) e convite ao povo (31, 28-30);
- o livro é guardado ao lado da Arca (31, 24-27).

2. O cântico de Moisés (32, 1-47):
- profecia e celebração (32, 1-43);
- exortação: Lei como fonte de vida (32, 44-47).

3. Último ato de Moisés (32, 48-33,29):
- Moisés sobe ao monte Nebo e contempla a terra (32, 48-52);
- Bênção de Moisés (33).

4. Morte de Moisés (34):
- a morte (34, 1-9);
- elogio (34, 10-12).

Javé é o Pai que ama o seu povo, adotando-o como filho. A esse amor, o povo responde com o temor e o amor.

O amor de Javé por seu povo é testemunhado pelos seus dons:
- ele dá a liberdade (êxodo)
- e a vida (terra).

Esse dom é fruto, também, da conquista do povo.

Na conquista da liberdade, se tem a relação política.

Na conquista de terra, se tem a relação econômica.

A JUSTIÇA DE DEUS NASCE DO AMOR E SE REALIZA NO DOM DA LIBERDADE E DA VIDA PARA TODOS.

A justiça do homem nasce do temor-amor que conquista a liberdade e a vida, transformando-a em partilha e fraternidade.



O Deuteronômio fornece uma metodologia pastoral para a atualização da fé dentro dos problemas e conflitos de um novo contexto histórico, com seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.

Atualizando sua leitura, podemos avaliar, de forma crítica, os problemas e desafios que um determinado contexto histórico-social levanta, tomar desse parâmetro ou modelo do passado a tradição válida ou a atitude básica permanente, aplicar a tradição válida ou a atitude básica permanente para responder aos problemas do presente e, essa resposta, deve conservar a natureza da tradição válida ou a atitude básica permanente.

Assim, o deuteronômio, lança o alicerce da ética. Apresenta a Lei que não é imposta de fora, mas que provoca o emergir da consciência e pede uma decisão.

Temer e amar javé, é uma tarefa que engloba toda vida

20 de setembro de 2010

BÍBLIA - NÚMEROS (aula 09)


Este livro se chama Números porque começa com um grande recenseamento do povo hebreu no deserto.

Após a libertação da escravidão no Egito (livro do êxodo) e a formação recebida no Sinai (livro do Levítico), o povo recebe as últimas instruções e se põe em marcha pelo deserto (Números) até a planície de Moab, onde Moisés profere o seu último discurso (Deuteronômio), visando à conquista e à organização do povo na Terra Prometida.

Para os hebreus, a saída do Egito foi uma lenta e penosa caminhada em busca da terra.

Neste livro, a caminhada se transforma numa majestosa marcha organizada de todo um povo. No centro de toda caminhada está a arca da Aliança, o que destaca não um relato histórico, mas uma transmissão de mensagens.

À luz da caminhada do povo para a terra prometida, estamos nós em busca do Reino de Deus. A organização mostra que, dentro do povo de Deus, as funções devem ser repartidas, mas com um único objetivo: realizar o projeto de Deus.

A arca de Deus no centro indica que, nessa caminhada, Deus está sempre presente no meio de seu povo.

Porém, nos depararemos com fortes conflitos (capítulo 16) e que seus chefes estão sujeitos a fraquezas e desânimos, por mais importantes que sejam na comunidade.

O livro se abre ao papel do profeta, que na caminhada do povo de Deus para a Terra Prometida, deve haver sempre um lugar para o profeta (22 a 24).

O nome “Números” veio da tradução grega do AT. O título do livro em hebraico é mais interessante: “No deserto” (bamidbar).

Neste livro, o deserto é o personagem principal e decisiva.

A divisão do livro
1,1-10,10: os últimos 19 dias no Sinai;
10,11-21,35: em marcha pelo deserto;
22-36: em Moab, diante da Terra Prometida.

A primeira parte prolonga e completa a apresentação das instituições descritas no Êxodo e no Levítico.

A segunda parte é a saída de Israel do Sinai, atravessando o deserto, chegando aos limites da terra de Moab.

A terceira parte começa com um novo recenseamento (26) e contém as disposições de Moisés para a partilha dos territórios conquistados (32).

O livro Números é bastante complexo e suas tradições possuem materiais que vieram à luz num período de mais de oitocentos anos, entre 1230 e 400 a.C.

Nele encontramos textos javistas (preocupações da corte Davi e Salomão, significação universal do povo), eloístas (preocupação com as tribos, Moisés é o profeta e comunica o espírito profético) e sacerdotais (refletindo a preocupação com os sacerdotes em torno do culto). Trata-se de um relato, com elementos legislativos.

Compreendendo que o conflito de sistemas é o cerne da Bíblia e que ele foi instaurado pelo próprio Deus, cabe a todas as pessoas que se dedicam à evangelização, vencer o conformismo que aprisiona o povo no velho sistema para instaurar o conflito e instigar à luta pela construção de um novo sistema.

O Deserto
É o lugar da educação, onde o povo deve aprender um novo modo de viver. A passagem do Egito para a Terra Prometida foi longa... tempo para transformações...

Deserto é lugar de dificuldades e desgraças (11,1-3)...
Deserto é lugar de fome (11,4-9)...
Deserto é lugar de racionamento (11,4.13.31-34)...
Deserto é lugar de pragas e doenças (17, 6-15)...
Deserto é lugar de sede (20, 2-13)...
Deserto é lugar de cansaço (21, 4-9).

O quadro de conflitos mostra que as coisas não são pacíficas no processo de conquistar a vida. Damos valor ao que conquistamos. O deserto é um tempo de rever as próprias atitudes, projetar vida, projetar sonhos... dar passos.

Moisés demonstra grande paciência e é descrito como “o homem mais humilde entre todos os homens da terra” (12,3), mas tal qualidade não o pouparam do desânimo, da dúvida e até do espírito de vingança.

O resultado da caminhada no deserto é sombrio, nenhum dos que saíram do Egito entraram na Terra, nem o povo, nem Moisés e Aarão.

Quem vai entrar na Terra é a nova geração (14,31; 26, 63-65), que poderá aprender com erros e acertos da geração anterior.

É graças a Moisés que o povo liberto recebe a sua primeira organização.

O Decálogo é incompreensível sem o movimento de libertação.

Todos vêem as coisas ou os acontecimentos, mas em geral, as pessoas ficam na casca ou na aparência dos acontecimentos. O profeta penetra a casca e vai ao seu núcleo profundo, que é o segredo que o acontecimento possui.

SEGREDO
- COISA = ACONTECIMENTO
- VONTADE DE DEUS
(sentido do acontecimento)

Assim, Números nos confirma a presença de Javé como Deus libertador, Deus da vida.

Um Deus que está no meio do povo, presente na “tenda do encontro”, não se encontra em edifícios ou estruturas, mas está no meio do povo. Deus é popular: não quer estar acima e nem longe do povo.

Estamos diante de um Deus que acompanha e guia o seu povo, um Deus vigilante, compassivo, exigente.

O livro todo é pontilhado pela expressão “Javé disse a Moisés” ou “Javé disse a Moisés e Aarão” (1, 1.54; 2, 1.34).

Israel é o povo que ouve a voz de Javé mediada pelo seu profeta.

Assim é a experiência vivida no deserto, um lugar da educação ideológica de Israel: deixar os mitos do antigo sistema e começar a cultivar a memória, formando a consciência histórica capaz de produzir e solidificar um novo sistema.

O Salmo 78 nos convida a rezarmos esse momento, essa lembrança e esse esquecimento.

É no deserto que se encontra a solidariedade.

É no deserto que a solidariedade social despertará a nova comunidade, na luta e na conquista da nova terra.

Um povo que não conheça a solidariedade social é um povo fraco e vulnerável, totalmente impotente diante da liberdade e da vida.
BÍBLIA - LEVÍTICO (aula 08)



Encontramo-nos no momento em que se dá a formação de um povo santo.

Levítico provém do nome Levi, a tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo.

Dentre os livros da Bíblia, o Levítico é o mais enfadonho para ser lido e o mais difícil para ser entendido. Muitos nunca o leram, outros pararam na metade e, os que conseguiram chegar até o fim, deram um suspiro de alívio.

Fala do culto, do sacerdócio e das práticas religiosas de Israel e do judaísmo. Sua riqueza se dá no conhecimento do período pós-exílico e na ascensão progressiva da classe sacerdotal. É o livro que define o estatuto do poder e do governo sacerdotal no pós-exílio.

Encontramos nesse livro um emaranhado de leis, cerimônias, rituais, festas e costumes, que nos desanimam e nos fazem perguntar: Para que ler isso?

Não podemos esquecer, porém, que tal livro é parte da revelação de Deus e, que por isso, tem sua mensagem válida.

É no Levítico que podemos descobrir a preocupação minuciosa de mostrar que o Deus santo está presente em todos os setores da nossa vida, curando, julgando, salvando e chamando-nos continuamente a sermos santos (19,2).

Também nesse livro se encontra a regra de ouro: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (19,18).

O livro do Levítico é um livro mais para ser consultado do que para uma leitura contínua, pelo caráter de leitura monótona e bastante árida.

O centro da ideologia presente em Levítico é a função de mediador que, enraizada na herança de Moisés e Aarão, pouco a pouco invadirá todos os campos da vida judaica, desde o religioso até o moral e social.

Como justificar o poder sacerdotal?
A justificativa está no poder mediação: o sacerdote é o mediador entre Deus e o povo. O povo só pode chegar até Deus por meio do sacerdote. E Deus só pode chegar até o povo por meio do sacerdote.

POVO -> Profano
SACERDOTE -> Intermediário
DEUS -> Sagrado


Estrutura do Livro:
Fruto de longa evolução, o livro do Levítico deixa ver, contudo, uma estruturação bastante marcada.

1.Os sacrifícios (1-7)
2.O sacerdócio mediador (8-10)
3.Pureza e impureza (11-16)
4.O Código de Santidade (17-26)
5.Apêndice: o resgate (27)

O livro do Êxodo, termina com a construção da Tenda do Encontro (40, 16-33) e as primeiras palavras do Levítico exprimem a legitimação dessa tenda.

Deus transmite, ao longo do livro, “suas leis e costumes”, explicando o bom uso dessa tenda para que seja verdadeiramente, o “lugar do encontro”. O título hebraico consiste na primeira palavra do texto: wayyiqrá = ele chamou.

SACRIFÍCIOS
Em todas as religiões, o sacrifício é uma tentativa de entrar em relação mais íntima com a divindade. Sacrifício enquanto “dom” oferecido à divindade; sacrifício operando uma “comunhão” com a divindade e sacrifício visando a uma “expiação” dos pecados.

SACERDÓCIO
As funções sacerdotais não parecem ser exercidas só por especialistas. Os patriarcas das famílias também as exerciam. Contudo, em torno dos lugares de culto, estabeleceram-se famílias sacerdotais que garantiam o serviço do santuário e conservavam as tradições e os costumes.

PURO E IMPURO
A noção de impureza é bem próxima a de “tabu”. Na impureza, o homem não entra em relação com Deus no culto. O ato culpável acontece quando, estando em impureza, a pessoa age como se estivesse pura (15,31).

SANTIDADE
Uma das noções capitais do Levítico. A santidade aponta todo o mistério insondável do Deus transcendente, inapreensível, inefável. E sendo transcendente, Deus permite ao homem aproximar-se dele (23) Este Deus incompreensível dá-se a conhecer e comunica sua vontade (19).
CRISTOLOGIA - SOTERIOLOGIA CONTEMPORÂNEA (aula 14)

INTRODUÇÃO
O Deus salvador e a decepção dos discípulos.
A cruz como grande escândalo.
O Servo sofredor de Isaías como uma explicação do acontecido com Jesus.

Os modelos de interpretação da morte de Jesus
- Sacrifício expiatório
- Satisfação substitutiva

O modelo do sacrifício expiatório
Jesus morreu pelo pecado do seu povo.

Pelos sacrifícios os homens veneravam a Deus e julgavam aplacar sua ira provocada pela maldade humana. Deus se tornava bom novamente.

Nenhum sacrifício conseguia aplacar definitivamente a ira divina.
A encarnação criou esta possibilidade de sacrifício perfeito.

O Deus irado não combina com o Deus-Pai misericordioso que Jesus nos revelou: o Deus amor e perdão.

Jesus insiste na primazia do amor ao próximo e da misericórdia sobre os sacrifícios e holocaustos.

Deus não espera os sacrifícios para oferecer sua graça. Ele se antecipa.

O verdadeiro sacrifício é abrir-se e entregar-se filialmente para Ele.

A vida humana possui uma estrutura sacrificial.

A vida só é humana mesmo quando sai de si, se abre para a comunhão, morre-para-si-mesma e se realiza no outro.

“Quem ama sua vida a perde e quem odeia sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna” (Jo 12, 25).

Deus sempre espera de nós este tipo de sacrifício.

Jesus foi assim o sacrifício perfeito: entregou toda sua vida e morte pelos outros e pelo Outro.

O modelo da satisfação substitutiva
No século XI, o bispo Anselmo de Cantuária formula este conceito: o pecado ofendeu infinitamente a Deus, e o homem não seria capaz de oferecer uma satisfação infinita.

Só Deus mesmo pode proceder esta satisfação.

É necessário que Deus se faça homem para oferecer a Deus esta safistação infinita. A morte cruenta na cruz é que verdadeiramente nos salva.

Este modelo é fruto duma visão feudal de Deus, e ajudou a formar uma imagem de um Deus cruel, sanguinário e vingativo, infelizmente ainda presente em muitas cabeças piedosas.

Deus surge como injusto: pede a vida de um inocente, e alegra-se com sua morte até o extremo de não poder perdoar o mundo sem ela.

É uma visão também absurda: nos reconciliamos com Deus por um ato que objetivamente é um crime maior do que o pecado que pretende reparar.
Deus Pai, mais do que um colaborador na salvação é, na verdade, um grande obstáculo a ser vencido.

Não! Deus não é sádico, injusto, sanguinário.

Em que consiste, afinal, a salvação?

Em ser o homem plenamente ele mesmo, realizando todas as aspirações do seu coração, nas mais diversas ramificações da existência: em suas relações com si mesmo, com Deus, com os outros, com o cosmos, com o meio ambiente, etc.

Salvação é ser fiel ao “conceito” que Deus pronuncia em mim. Se sou fiel ao pensamente que deveria encarnar, estarei salvo.

O homem sente-se incapaz desta realização. Nunca satisfaz às exigências que experimenta em si mesmo.

Nunca está satisfeito = feito o bastante, o suficiente. O homem fechou-se sobre si mesmo.

Só a Jesus, Deus concedeu realizar plenamente todas as aspirações do homem. Só Ele satisfez as exigências de abertura ontológica do homem.

Deus se encarnou não apenas para divinizar o homem, mas para plenamente humanizá-lo. Jesus nos mostra que a abertura plena, o verdadeiro homem, não é uma utopia, mas sim uma topia: somos salvos na medida de nosso empenho de satisfação de nossa vocação humana.

Soteriologia contemporânea

As noções de “sacrifício expiatório” e “satisfação” não mais encontram horizonte na sociedade contemporânea.

Os teólogos buscam na expressão “solidariedade” uma formulação mais acessível para a ação salvífica de Jesus.

O eixo central desloca-se para a expressão “por nós”. A existência toda de Jesus é uma existência para os outros.

Esta entrega está presente em toda a sua vida e perdura até hoje, na eucaristia, que é seu corpo “entregue por vós” (1 Cor 11, 24b) e seu sangue “derramado por muitos” (Mc 14,24).

O que é redentor em Jesus é toda sua vida: encarnação, vida, morte, ressurreição, ascensão, entrega do Espírito Santo.

A solidariedade do Cristo com a humanidade é singular: ele morreu “em nosso lugar”.

Ele salva ao experimentar e superar, na condição humana, o distanciamento que o pecado produziu entre a humanidade e Deus.

Ele faz com que o amor de Deus exista no lugar dos pecadores: ele toma sobre si os efeitos da humanidade distante de Deus e a carrega como o Servo.

Jesus, que está associado inteiramente a Deus, padece o mais radical abandono de Deus (Mc 15, 34). A distância de Deus, que é o pecado, é assumida no seio da relação divina do Pai e do Filho, que, no fim, foi transformada e superada na vitória da ressurreição.

Na morte e ressurreição de Jesus o máximo do amor redentor de Deus e do homem acontecem.

A salvação do Cristo age “a partir de dentro”.

Ele não é apenas um bom exemplo a ser seguido. Seu Espírito foi derramado em nossos corações. Nossa vida foi incorporada à sua vida: vivermos agora em Cristo (Cl 2,11), com Cristo (Cl 2, 12-20), por Cristo (Rm 7, 4), de Cristo (Gl 5, 24).

Mas... e a cruz?
Damos valor à cruz como consequência de toda sua vida. Ela foi o momento em que se manifestou até onde chegava o seu amor. A cruz foi “um acidente de trabalho”.

O Pai não desejou a morte de seu filho, como fica claro na parábola dos vinhateiros assassinos (Mc 12, 1-8).

É verdade que o Pai não evitou a execução de Jesus, mas para defender um valor maior: a absoluta e total seriedade e autonomia da história, respeitada por Deus mesmo quando a liberdade humana volta-se contra Ele.

O Pai não desejou a morte de Jesus. O que o Pai queria era que seu Filho fosse fiel à sua missão até o fim, até suas últimas consequências.

O Deus revelado por Jesus não é um Deus que se impõe pela força, mas sim o Pai que respeita a decisão humana. Se Jesus tivesse assumido o caminho do poder dominador teria deturpado a revelação do Deus Ágape.

A morte do Cristo foi desejada unicamente pela maldade humana.

Uma vez assumido este caminho, abrem-se duas possibilidades diante de Jesus:
O povo e seus dirigentes aceitarem a proposta do reino, vivendo a conversão ou rejeitarem Jesus e sua proposta.

Sabemos que historicamente foi a segunda possibilidade que se concretizou. Deus só queria, diretamente, que Jesus fosse aceito, mas, indiretamente, a possibilidade de rejeição está incluída na vontade do Deus que não se impõe pela força.

Jesus não buscou a cruz, apenas viveu o amor. O mundo sim, fechou-se a ele e criou-lhe cruzes pelo caminho.

Jesus não fugiu, não deixou de anunciar o Reino. Assumiu a cruz como sinal da fidelidade para com Deus e com a humanidade.

Este é o paradoxo da cruz: o que era obra do ódio, Jesus transformou em fonte de amor.

Pregado à cruz, Ele perdoa, inverte o movimento que mata.

Na morte violenta de Jesus, o amor vai ao extremo: revela que na luta entre o perdão e o ódio, aquele saiu vitorioso.

A vida venceu a morte!

Jesus não buscou o sofrimento. Este lhe foi imposto. Sua vontade não foi sofrer, mas amar.

A salvação foi realizada pelo amor, apesar de ter sido concretizada através do sofrimento. O que faltava ao mundo não era (e não é) a dor, mas sim o amor.

O que o Cristo nos pede é o seguimento, e não a dor.

Não é necessário buscarmos o sofrimento: já bastam as cruzes de cada dia.
O Senhor nos é totalmente solidário em nossas cruzes. Ele não está com aqueles que produzem a cruz, mas com aqueles que padecem com ela.

O amor de Deus não nos protege de todo sofrimento, mas nos protege em todo sofrimento.

Mas por que Ele não nos protege também de toda dor?

Porque o recurso ao “milagroso” ao “extraordinário” não teria limites e o mundo deixaria de ser mundo para ser um grande teatro onde Deus brincaria de marionetes com suas criaturas, privadas de toda liberdade, autonomia e iniciativa.

Mas apesar de todas as explicações, quando a dor aparece, continuamos achando que “não deveria ser assim”...

Nesses momentos, o homem de fé dá caminho à confiança, e sonha com o dia em que viveremos a plenitude do Reino, pois o Cristo nos prometeu que “Neste dia, nada mais me perguntareis” (Jo 16, 23)

O que importa é ser fiel a Cristo a qualquer custo, aceitando todo risco, esquecendo-se de si mesmo por ele, colocando o Evangelho no centro dos próprios interesses e dos próprios projetos pessoais.

A cruz que brota de nosso compromisso contra as cruzes do mundo, é a cruz que importa, e é a nossa incorporação à cruz do Mestre.