3 de agosto de 2010


CRISTOLOGIA - AUTOCONSCIÊNCIA E LIBERDADE HUMANA DE JESUS (aula 09)

INTRODUÇÃO
Através do estudo dos evangelhos é possível captar elementos importantes da psicologia de Jesus. É possível conjecturar como Jesus se autocompreendia. Especialmente o que diz respeito à sua autoconsciência e ao seu conhecimento humano.

A AUTOCONSCIÊNCIA DE JESUS
Como Jesus se autopercebia?
Podemos resumir o problema da autoconsciência de Jesus numa única questão:

  • Como o "homem Jesus" tinha consciência de que era o "Filho de Deus"?

  • Como Jesus sabe que é o "Filho de Deus" e não uma simples pessoa humana?
O que ensinou a Igreja ao longo do tempo?
Os grandes Concílios cristológicos da antiguidade cristã jamais abordaram formalmente a questão da consciência de Jesus. Mas oferecem elementos através dos quais podemos licitamente elaborar algumas reflexões acerca da psicologia de Jesus.

O que é a consciência humana?
A consciência é a experiência que um ser vivo dotado de razão tem de si mesmo; é a "percepção" pelo sujeito de sua pessoa como tal.

Refletindo:
Se o Verbo encarnado é uma só pessoa, é também um só sujeito consciente de si, ou seja, um só "eu". Podemos, assim, afirmar com segurança que a "única consciência de Jesus é então a de sua pessoa divina, encarnada e humanizada".

"Não podemos conceber a humanidade do Cristo como um sujeito pensante à parte". O "eu" de Jesus é o "eu" do "Filho de Deus" tornado homem. O "eu" de Jesus é único.

Através da união hipostática (união das naturezas divina e humana de Jesus Cristo numa única Pessoa) a ciência do Verbo divino é comunicada à natureza humana de Jesus. Mas esta comunicação, na economia da encarnação, obedece a um princípio fundamental: o respeito à condição humana de Jesus.

Ao assumir a natureza humana, que ele não absorveu, o Verbo divino assumiu e respeitou todas as modalidades da atividade consciente, próprias dessa natureza. Por este fato, Jesus tomou consciência de si e dos outros por meio de uma temporalidade histórica que atravessa todas as idades de sua vida, conhecendo seu desenvolvimento e seu progresso.

O CONHECIMENTO HUMANO DE JESUS
Que tipo de conhecimento teve Jesus?

Conhecimento perfeito ou conhecimento limitado?

Hipostaticamente unidas, as duas naturezas não se fundem.

A natureza humana conserva-se integralmente.

Com isso, as perfeições da natureza divina, no caso o conhecimento divino, não são comunicadas, diretamente, à natureza humana. Mas como as duas naturezas também não estão separadas uma da outra, o conhecimento de Jesus é o conhecimento do "Filho de Deus".

Além disso, o estado "quenótico" da existência humana de Jesus deixa perceber que a glória divina (doxa) permanece recolhida em sua vida terrena, até a hora de sua glorificação.

Deixa perceber também que o Verbo, tendo assumido plenamente a condição concreta do gênero humano, com exceção do pecado (cf. Hb 4, 15), participa de nossa situação, marcada por sofrimentos e pela morte.

As perfeições humanas de Jesus são proporcionais a seu estado "quenótico" e se prendem à sua missão.

Jesus, em sua vida terrena, tinha as perfeições e os conhecimentos humanos necessários para bem cumprir sua missão salvífica.

Os evangelhos apresentam contradições ao relatar os conhecimentos de Jesus.
Por exemplo:
  • A sabedoria de Jesus já causa espanto aos doze anos, no Templo (cf. Lc 2, 40).
  • O povo fica admirado com sua doutrina (cf. Mt 7, 28).
  • Ele ensina com autoridade pessoal e única (cf. Mc 1, 22).
  • Jesus revela maravilhosa intimidade com as Escrituras, sem tê-las estudado formalmente (cf. Jo 7, 15).
  • Conhece os segredos dos corações (cf. Lc 6, 8).
Por outro lado, a tradição evangélica atesta que Jesus ganhou "experiência" e "crescia em sabedoria" (cf. Lc 2, 52).

Jesus também saboreava surpresas, fazia perguntas e chegou a admitir desconhecimentos (cf. Mt 24, 36; Mc 13, 32).

Em suma, os evangelhos revelam que Jesus certamente sabia de sua identidade pessoal de "Filho de Deus" e deve ter tido "especial conhecimento" do Pai para revelá-lo à humanidade.

No entanto, os evangelhos relatam que Jesus também teve desconhecimentos e dúvidas; ou seja, o conhecimento de Jesus também foi marcado por limitações.

A possível solução para essas contradições encontram-se na "quenose" do Verbo divino.

Ao assumir a condição humana, o verbo submeteu-se à lei universal do itinerário de crescimento progressivo próprio de todo ser humano.

Em toda a sua vida, Jesus irá realizá-la como homem. Entretanto, no pólo original de sua consciência, que o habita, não há apenas o fato de saber que é um homem, mas o saber original que é um homem em uma relação única com Deus: ele é o "Filho", único que pode dizer com toda verdade a Deus, ABBA (papai).

Em Jesus, e unicamente nele, a identidade divina está inscrita no coração de sua identidade de homem.

Jesus progressivamente toma consciência de sua identidade divina, no decurso de sua existência.

CONHECIMENTO INFUSO
Não há dúvida que Jesus sabia tudo o que era necessário para a realização de sua missão salvífica.

Jesus possuía um "conhecimento infuso".

Jesus veio conhecer de Deus tudo o que lhe era necessário para levar a termo a própria missão e tudo quanto nos deveria revelar. Por "infusão" outros conhecimentos chegavam até Jesus, como:

  • a profunda percepção do significado das Escrituras (cf. Jo 7, 15),

  • sua intuição a respeito do plano de salvação da humanidade por Deus,

  • o sentido salvífico de sua morte na cruz.
Ele conheceu tudo o que era necessário à sua missão salvífica e não precisava conhecer mais nada fora disso.

O QUE JESUS NÃO SABIA
É sobretudo a propósito do "dia do juízo" que se põe esta questão.
Os evangelhos revelam Jesus afirmando, com certa ênfase, que não conhece "o dia" (cf. Mt 24, 36; Mc 13, 32).

Por um conhecimento infuso e profético, Jesus conhecia tudo o que precisava saber, em sua missão reveladora e salvífica. Se o "dia do juízo" não constava da missão reveladora de Jesus, não era preciso que o conhecesse então, simplesmente, não o conhecia.

O não saber faz parte de seu estado quenótico. A conclusão se impõe por si mesma.

Cristo em sua existência terrestre, possuía duas ordens de saber:

  • um saber adquirido de acordo com a cultura de sua época,

  • um conhecimento profético – infuso – que lhe permitia assegurar sua missão salvífica.

A VONTADE HUMANA DE JESUS ERA PERFEITA?
Para responder a essa pergunta é necessário, de novo, relembrar o "estado quenótico" de Jesus antes da Páscoa e sua identificação real com a condição concreta da humanidade (cf. Hb 4, 15), que vedam a aplicação do falso princípio das "perfeições absolutas" à vida terrena de Jesus.

Na verdade, pode-se e deve-se atribuir à vontade humana de Jesus certas perfeições, em razão de sua identidade pessoal de "Filho de Deus".

É o caso da ausência de pecado e até ausência da inclinação para o pecado, ou seja, da "concupiscência".

Mas a pessoa divina de Jesus não o impede de ter reações típicas da natureza humana, como medo, indignação, decepção e tristeza: "à nossa semelhança, ele foi provado em tudo, sem, todavia, pecar" (Hb 4, 15).

JESUS ERA ISENTO DE PECADO!
O Novo Testamento enfatiza a ausência de pecado em Jesus: Hb 7, 26; 1Pd 1, 18; 2, 22; 1Jo 3, 5.

A impecabilidade de Jesus é conseqüência da união hipostática: se ele viesse a cometer pecado, o autor de tal ato seria Deus, o que é uma contradição.

É importante, no entanto, destacar que a ausência de pecado em Jesus e sua impecabilidade não o tornam imune à tentação.

Jesus experimentou em sua humanidade, as graves exigências que a vontade do Pai e a fidelidade à sua vocação missionária messiânica lhe impuseram.

Não foram sem dor sua obediência e docilidade, por mais forte e submissa que fosse sua vontade.

Jesus foi fortemente tentado a abandonar sua vocação messiânica, segundo o modelo do "Servo Servidor".

É característico que nos três evangelhos sinóticos a cena das tentações venha logo após o batismo, quando teve início a vida pública de Jesus e se manifestou sua vocação de"Servo do Senhor".

JESUS NÃO ERA IMUNE AO SOFRIMENTO
Os evangelhos, de modo especial nas quatro narrativas da Paixão, atestam que Jesus era passível de sofrimentos corporais.

Insiste também nisso a Carta aos Hebreus (cf. Hb 2, 17-18; 4, 15; 5, 8).
A mesma afirmação consta, como doutrina de fé, no 1º Concílio de Latrão (649) (cf. DS 504) e é confirmado pelo 4º Concílio de Latrão (1215) (cf. DS 801) e pelo Concílio de Florença (1442) (cf. DS 1337).

Do sofrimento moral de Jesus há nítidas evidências, principalmente nas narrativas evangélicas da cena da "agonia": "Tomado de angústia, ele rezava mais insistentemente" (Lc 22, 44).

Sem dúvida, a agonia constitui um dos episódios mais misteriosos da vida de Jesus.

Salta aos olhos que os evangelhos sinóticos multipliquem observações para descrever com pormenores os sentimentos humanos e as reações de Jesus diante de uma morte iminente e violenta, ao mesmo tempo em que busca em meio às trevas a vontade do Pai.

Mateus e Marcos falam de tristeza até a morte (cf. Mt 26, 38; Mc 14, 34), angústia (cf. Mt 26, 37; Mc 14, 33).

Lucas, de modo mais explícito, descreve a agonia de Jesus, observando que o seu suor tornou-se semelhante a gotas de sangue que caíam por terra (cf. Lc 22, 44).

Os três evangelistas sinóticos acentuam a oração intensa de Jesus, concentrado na vontade do Pai que se tornara obscurecida nessa suprema prova.
Pode-se e deve-se afirmar: Jesus experimentou angústia e tristeza, desalento e conflito.

Vivenciou conosco, de forma dilacerante, o medo despertado pela morte iminente e, mais que isso, violenta, tão contrária à nossa natureza humana.

Em meio à essa batalha interior, Jesus, na solidão e nas trevas, queria a vontade de Deus que, estranhamente, se fizera obscura e incompreensível.

Na verdade, a posse definitiva e a visão de Deus assumem, por sua natureza, a alma humana inteira. Nisso reside, precisamente, o "estado glorioso".

O Jesus terreno, porém, não está na glória, mas no estado de "quenose". Não atingiu ainda o termo de seu percurso humano. Em seu auto-esvaziamento, em sua caminhada para o Pai, Jesus não desfruta a "visão dos bem-aventurados" no céu.

Possui, no entanto, a consciência humana de sua identidade de "Filho de Deus" e, por isso, tem a "visão imediata" de Deus, chamado por ele de "Pai".
Jesus tinha consciência de que sofria como Filho e que devia sofrer, apesar de ser o "Filho de Deus" (cf. Hb 5, 8). Só na ressurreição chegará a desfrutar a posse definitiva de Deus, unindo-se a Ele na glória.

OS ATOS HUMANOS DE JESUS: EXPRESSÃO DO PODER SALVÍFICO DE DEUS
Certas atividades humanas de Jesus são a expressão humana do poder salvífico de Deus.

É o caso dos milagres, as curas e os exorcismos.

Em todos esses acontecimentos, o ato humano da vontade de Jesus representa o veículo do poder divino de curar, libertar, restaurar e salvar.

Os milagres de Jesus nascem do exercício de sua própria vontade humana: "Eu quero, sê purificado" (Mc 1, 41); "Lázaro, vem para fora!" (Jo 11, 43).
Sua vontade humana é eficaz, porque expressão humana da vontade divina, ou seja, porque é sinal eficaz do poder divino: "Uma força saía dele e os curava a todos" (Lc 6, 19).

BIBLIOGRAFIA
Todo o texto acima exposto foi extraído da apostila elaborada pelo Prof. Dr. Pe. José Roberto Palau para o curso de Cristologia, do Instituto de Teologia e Filosofia Santa Terezinha (ITEFIST), São José dos Campos, 2009.

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