28 de junho de 2010

CRISTOLOGIA - MILAGRES E CURAS DE JESUS (aula 07)


INTRODUÇÃO
O centro da mensagem de Jesus é o Reino de Deus, o domínio de Deus.
Jesus anuncia a chegada do Reino não só através de sua palavra e pregação, mas também pelo perdão, acolhimento, gestos e, através de ajudas e curas às pessoas concretas:
"E (Jesus) percorria toda a Galiléia,ensinado nas sinagogas , pregando o evangelho do reino e curando toda doença e enfermidade do povo" (Mt 4, 23)
Os Evangelhos narram cerca de vinte milagres.
Jesus, no entanto, não é um "fazedor de milagres":
"Vendo Jesus, Herodes ficou muito contente, havia tempo que queria vê-lo, e esperava ver algum milagre feito por ele. Interrogou-o com muitas perguntas, ele, porém nada respondeu" (Lc 23, 8-9)
"A outros salvou, a si mesmo não pode salvar! Rei de Israel que é, que desça agora da cruz e creremos nele" (Mt 27, 42)
"Em verdade, em verdade, vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes" (Jo 6, 26)
Ele não dá "sinais dos céus" para fariseus e não faz milagres em Nazaré, só o "sinal de Jonas".

 
O SENTIDO DOS MILAGRES
Só podemos entender os milagres e curas em estreita conexão com toda a missão de Jesus:
"João ouvindo falar na prisão a respeito das obras de Cristo, enviou-lhe alguns dos seus discípulos para perguntarem: `"És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?" Jesus respondeu-lhes: "Ide contar a João o que ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados" (Mt 11, 2-5)
Os milagres estão na perspectiva da inauguração do Reino escatológico. São, no tempo presente, o penhor da realidade que virá. Sublinham concretamente a eficácia invisível da salvação. São antecipações do poder vivificador de Deus, que irrompe no tempo e na história.
É um erro pensar-se nos milagres apenas pela utilidade, rejeitando-lhe o sentido, não relacionando o fato com a palavra.
Os milagres e curas são parte da pregação do domínio de Deus, subordinados à sua palavra. Vivenciam a experiência concreta da presença dinâmica de Deus, com sua força que cura, que ajuda, que salva.
Eles têm sentido pela intenção religiosa que os caracteriza.
Manifestam a glória de Deus: cura o cego, porque Ele é a luz! Traz Lázaro de volta à vida, porque Ele é a vida! Anda sobre as águas, porque Ele é Senhor da natureza!
Os milagres e curas de Jesus não são grandezas em si. Revelam, sim, algo sobre Ele e sua missão. Por meio deles, Jesus se apresenta com a sua missão recebida do Pai.
É preciso dissociar o conceito bíblico e teológico de milagre do conceito científico, como algo que está acima, fora ou contra as leis naturais
Os milagres e curas de Jesus têm sempre uma perspectiva bilateral: é atuação de Deus e olhar da fé do homem.
A fé é a porta de acesso: mais do que confiar na força de cura, o que importa é o "sim" que se dá à palavra daquele que salva.
Sem fé não há milagre.
Muitas vezes, as ações de Jesus não têm a fé como resposta, e sim conflito e descrença.
Os nomes, sinais e sintomas das doenças que aparecem nos evangelhos são, para nossos conhecimentos modernos, imprecisos e vagos: paralisia podia ser qualquer perturbação da locomoção; lepra são diferentes doenças da pele, que tornavam a pessoa cultualmente impura; possessões poderiam ser casos de epilepsia...
Cada evangelista tem seu ponto de vista a respeito dos milagres e curas:
Em Mateus, domina a palavra, o discurso, e os milagres acompanham a palavra
Em Marcos, estão sob o signo da luta travada entre o Filho do Homem e o diabo
Em Lucas, Jesus é o grande benfeitor da humanidade, o profeta
Para João, os milagres entram na categoria de "sinais" e "obras".
São sinais que apontam para a realidade do poder de Jesus
São obras que continuam as obras do Pai, desde a criação e confirmam sua unidade com o Pai e revelam este mistério: "Meu Pai trabalha até agora, e eu também trabalho".
Os ouvintes de Jesus viam o agir de Deus nas coisas que não conseguiam explicar: adorar ou condenar, ver Deus ou o diabo em ação. Para eles não tinha outra alternativa, pois em sua visão de mundo, os demônios dominavam as pessoas provocando sofrimento físico e psíquico.
Para eles, o demônio podia entrar nas pessoas e tomar posse delas, ou as dominavam e causavam doenças.
Assim, muitas curas de Jesus têm traços de exorcismo, pois o que cura tem poder sobre os "demônios da doença."
O poder de Deus que se manifesta nesses exorcismos é uma prova de que o Reino de Deus já chegou à humanidade:
"Se é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios, então o Reino de Deus já chegou. Quando um homem forte e bem armado guarda sua morada, seus bens ficarão a seguro; todavia, se um mais forte o assalta e vence, tira-lhe a armadura em que confiava, e distribui seus despojos" (Lc 11, 21s)
Jesus é o "mais forte" que veio libertar o homem de todos os males que o afligem: doença, fome, cegueira, natureza, morte, pecado, etc
Perdoa pecados que provocam os males; domina as vontades fracas dos homens que passam a segui-lo; domina a natureza que conspira contra os homens; elimina a fome, multiplicando os pães; cura todo tipo de doença (coxos, cegos, mudos, leprosos, etc)
Ele é superior à morte, e ressuscita Lázaro, a filha de Jairo e o filho da viúva de Naim.
Sua presença é motivo de alegria e esperança para um povo dominado e sem esperança.
Jesus oferece a cura a pessoas que são excluídas do convívio humano, e anuncia que Deus quer reintegrar à família humana os marginalizados: os leprosos, os endomoninhados.
Jesus liberta da noção da doença como consequência do pecado (próprio ou dos pais).
Afinal, o que são milagres?
São sinais do amor de Deus
São sinais da vinda do Reino
São sinais da missão divina
São sinais da força salvífica do evangelho
São sinais da glória de Cristo
São sinais da transformação do mundo
Jesus não é um mago que arranca o homem de sua condição terrestre, infantilizando-o, mas é aquele que dá sentido transcendente àquilo que aparentemente só tem valor histórico e terrestre.

 
UM GRANDE SINAL
Houve na vida de Jesus um importante momento, um grande "sinal": A TRANSFIGURAÇÃO.
São narradas pelos três evangelhos sinóticos, com pequenas diferenças.
" Mais ou menos oito dias depois destes palavras, tomando consigo Pedro, João e Tiago, ele subiu à montanha para orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto se alterou, suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura. E eis que dois homens conversavam com ele: eram Moisés e Elias que, aparecendo envoltos em glória, falavam de seu êxodo que se consumaria em Jerusalém. Pedro e os companheiros estavam pesados de sono. Ao despertarem, viram sua glória e os dois homens que estavam com ele. E quando estes iam se afastando Pedro disse a Jesus: "Mestre, é bom estarmos aqui, façamos três tendas, uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias", mas sem saber o que dizia. Ainda falava, quando uma nuvem desceu e os cobriu com sua sombra, e ao entrarem eles na nuvem, os discípulos se atemorizaram. Da nuvem, porém, veio umaa voz dizendo: "Este é o meu Filho, o Eleito, ouvi-o." (Lc 9, 28-35)
Nos três Evangelhos esta passagem vem após a confissão de Pedro: "Quem sou eu, no dizer das multidões? E eles responderam: "João Batista, outros, Elias. Outros porém um dos antigos profetas que ressuscitou". Ele replicou: "E vós quem dizeis que eu sou?" Pedro respondeu: "O Cristo de Deus". Jesus disse: "É necessário que o Filho do Homem sofra muito, seja rejeitado pelos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas, seja morto e ressuscite ao terceiro dia" (Lc 9, 18b-22)
As duas passagens falam da divindade de Jesus e da ligação da glória com a paixão.
Vemos de novo a montanha como lugar da proximidade com Deus.
A transfiguração é também um acontecimento da oração: em sua unidade com o Pai, Jesus é luz da luz.
Fica clara a diferença de Jesus com Moisés. Este, "quando descia do monte, não sabia que a pele de seu rosto irradiava luz, porque ele tinha falado com o Senhor" (Ex 34, 29-35)
Jesus brilha a partir do interior. Ele não recebe a luz, Ele mesmo é luz.
No Apocalipse, João também fala de vestes brancas como expressões do ser celeste, mas elas foram "lavadas no sangue do Cordeiro" (Ap 7, 14b).
Aparecem também Moisés e Elias, e o tema do diálogo é a cruz, "o êxodo" de Jesus em Jerusalém. Eles são símbolos da lei e dos profetas, e mostram que o tema fundamental delas é a esperança de Israel, o definitivo "êxodo libertador".
Fica claro que a paixão traz redenção, que Ele foi penetrado pela glória de Deus, que a paixão será mudada em luz, liberdade e alegria. Jesus conecta fortemente a glória com a cruz.
No Antigo Testamento, na experiência do deserto, a nuvem era sinal da presença de Deus, que acompanhava o povo peregrino: "Quando Moisés entrava na Tenda, baixava a coluna de nuvem, parava à entrada da Tenda, e Ele falava com Moisés. Iahweh, então, falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo" (Ex 33, 9.11)
O povo hebreu até hoje celebra a "Festa das Tendas" (Sukkot), que faz memória ao período em que viveram em tendas no deserto, e antecipação da divina sukkot, na qual os redimidos habitariam no tempo futuro. A transfiguração ocorreu neste período, o que confere um colorido especial à palavra de Pedro de armar tendas: ele reconhece que o tempo messiânico chegou!
Não esquecer o prólogo de João: "O Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós" (Jo 1, 14)
A ressurreição é, assim, antecipada na Transfiguração.
A voz de Deus repete a voz do batismo, e lhe dá novo sentido: "Ouvi-o!"
Existem três messianismos presentes, nas alusões ao Salmo 2 (Messias-Rei), a Isaías 42 (Messias-Servo) e ao Moisés (Messias-Novo Moisés)
Na transfiguração é revelada a majestade divina, oculta antes nas aparências do Servo.
Ela é antecipação da glória que virá. É irrupção e início do tempo messiânico. Os discípulos experimentam a parusia antecipada, e são, lentamente, introduzidos profundamente nas mistérios do Cristo.
No encontro com a glória de Deus em Jesus, eles aprendem a mensagem de Paulo aos discípulos de todos os tempos:
"Os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escâncalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus." (1 Cor 1, 22-24)

 

 

 

 

15 de junho de 2010

CRISTOLOGIA - REINO DE DEUS (aula 06)

INTRODUÇÃO

O anúncio do Reino de Deus se dá no contexto de opressão e dominação em que vivia o povo Hebreu do I século. Jesus se insere num contexto muito carregado de expectativas messiânicas e apocalípticas. Basta relembrar a dominação que pesava sobre a Palestina desde o ano 722 a.C. (no Reino do Norte), e 587 a.C.(no Reino do Sul), passando por vários impérios: Babilônico (605-539 a.C), Medo (625-550 a.C), Persa (539-331 a.C), Helênico (336-141 a.C), Romano (63 a.C - 132 d.C). São séculos de dominação política e cultural. São séculos de opressão econômica e, em muitos momentos, de verdadeiros massacres contra a população. Sobretudo com os romanos, onde houve uma cobrança altíssima de impostos e uma agitação social generalizada.

É dentro deste contexto que se pode compreender a importância do anúncio do Reino de Deus como Boa-Nova.


Depois que João foi preso, Jesus veio para a Galiléia, proclamando a Boa Nova de Deus: "Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa-Nova"(Mc 1,14-15). Com estas palavras o Evangelho de Marcos descreve o início do ministério de Jesus e designa ao mesmo tempo o conteúdo essencial de sua pregação.

Mateus resume assim o ministério de Jesus na Galiléia:

Jesus percorria toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas deles, anunciando a Boa-Nova do Reino e curando toda espécie de doença e enfermidade do povo. (Mt 4,23).

Jesus começou a percorrer todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando a Boa Nova do Reino e curando todo tipo de doença e de enfermidade. (Mt 9,35).

O conteúdo central do evangelho diz: O Reino de Deus está próximo! É exigida uma resposta do homem a esta oferta: Conversão e Fé.

A Expressão "Reino de Deus" ocorre 122 vezes no NT, sendo que 99 vezes nos três evangelhos sinóticos. Destas 99 vezes, 90 pertencem às palavras de Jesus.

Jesus anunciou o Reino de Deus e não um Reino qualquer.


 

REINO DE DEUS e REINO DOS CÉUS

Mateus fala, porém, do "Reino dos Céus"; mas a palavra "céu" é utilizada por respeito perante o mistério de Deus e pelo fato de não ser pronunciada ou evitada pelo judaísmo.

"Reino dos Céus" não se indica algo que esteja para além; ao contrário, o que está em causa é o discurso sobre Deus, que transcende o nosso mundo, mas é ao mesmo tempo interior ao mundo.


 

REINO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

O anúncio da soberania de Deus, como toda a mensagem de Jesus, origina no Antigo Testamento (AT).

Lá estão em primeiro lugar os chamados salmos de entronização, os quais proclamam o Reino de Deus (YHWH) - um reino que é compreendido de um modo cósmico-universal e que Israel acolhe no modo de operação (Sl 47; 93; 96 - 99). A partir do século VI a.C e perante as catástrofes na história de Israel, o Reino de Deus torna-se esperança a respeito do futuro.

No judaísmo do tempo de Jesus, encontramos um conceito do reinado de Deus no culto do Templo de Jerusalem e na liturgia da sinagoga. O judeu piedoso reza todos os dias a Shemá Israel: "Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças"(Dt 6,4-5). A recitação desta oração foi interpretada como o modo de aceitar o julgo da soberania de Deus.


 

REINO DE DEUS: CENTRO DA MENSAGEM E DA ATIVIDADE DE JESUS

Para compreender o significado que Jesus atribuía à própria vida, às suas atividades, opções, ao seu comportamento e até à própria morte, é indispensável atentar para a relação existente entre Jesus e o Reino de Deus. De fato, o Reino constituía o centro de toda a vida de Jesus (cf. Mt 4, 23; Mc 1, 15; Lc 4, 43; 8, 1). E convém notar que Jesus não se limita a afirmar a existência do Reino de Deus. O que ele anuncia é a grande novidade da chegada desse Reino: ele vem já, agora!


 

EM QUE CONSISTE O REINO DE DEUS?

Não há elementos objetivos que nos permitam a afirmar que Jesus fez uma definição clara do Reino de Deus. Para entender a compreensão que Jesus tinha de Reino de Deus, é necessário recorrer a várias aproximações.

Por isso, possuem valor especial aqueles referências ao Reino de Deus que, com muita probabilidade, são do próprio Jesus. É o caso das bem-aventuranças e do "Pai-Nosso".

Da leitura atenta das bem-aventuranças (cf. Mt 5, 3-12; Lc 6, 20-23), depreende-se o que o Reino traz: os famintos são saciados, os que choram são consolados, etc. Quer dizer: o sofrimento é afastado.

O Reino de Deus implica um mundo novo onde prevalecem a justiça, a fraternidade e a paz. A imagem do paraíso talvez seja a mais indicada para ilustrar o que seria a novidade do Reino de Deus.

A harmonia com Deus propicia relações dialógicas entre os seres humanos, um relacionamento responsável entre estes e o meio ambiente, bem como uma relação de cada ser humano consigo próprio, vivida na verdade e na sinceridade.


 

O REINO: DOM GRATUITO DE DEUS

O Reino é um dom totalmente gratuito. O Reino vem, assim, pela ação e pela iniciativa de Deus. Constitui um dom tão valioso que não existe esforço humano capaz de conquistá-lo ou de comprá-lo: só pode ser recebido como "dom". Ao ser humano cabe abrir-se a esse dom estupendo, acolhendo-o com alegria e gratidão. O Reino é, pois, obra de Deus e só este pode oferecê-lo ao ser humano (cf. Mt 25, 34; Mc 4, 26-29; Lc 12, 32; 22, 29-30).

Em relação ao dom do "Reino de Deus", a atitude fundamental do ser humano resume-se na abertura, na receptividade, no acolhimento. Como ponto de partida para receber o dom do Reino, é indispensável que o ser humano reconheça a própria incapacidade de "auto-salvar-se". Por isso, o homem ou a mulher, fechados numa auto-justificação orgulhosa, são incapazes de experimentar o dom do Reino.


 

CONVERSÃO E FÉ

O Reino é dom, mas é um dom pessoal, que exige uma resposta do ser humano. No evangelho de Marcos, a mensagem do Reino é sintetizada nas palavras: "Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa-Nova"(Mc 1,14-15).
A palavra "conversão" significa repensar, sentir, pensar e agir de outro modo.

A "conversão"
a que Jesus convoca significa colocar-se no seguimento dele, Jesus, como seu discípulo. O discípulo é chamado a fazer a mesma coisa que o Mestre: anunciar o Reino e curar os doentes (a cura é um sinal da atuação do Reino de Deus que vence o mal, representado pela doença).


 

O REINO REJEITADO E O JUÍZO

A mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus é "mensagem de salvação". No entanto, existe a possibilidade bem real de o ser humano ficar fechado na sua auto-suficiência farisaica, rejeitando, assim, a proposta salvífica do amor de Deus. Rejeitar a salvação resulta na ruína do ser humano (cf. Mt 7, 24-27).

A decisão para acolher o dom de Deus deve ser tomada já, agora, pois o juízo chegará de maneira inesperada (cf. Mt 24, 40-44); é necessário decidir-se agora, enquanto ainda estamos no caminho (cf. Lc 12, 57-59).

Sabemos muito bem qual será o critério usado no juízo: a misericórdia vivida em relação aos menores dos irmãos. Surpreendentemente, o "Filho do Homem", o juiz, aparece identificado com eles (cf. Mt 25, 31-46).

O que esses e outros textos sobre o juízo querem realçar é a necessidade da vigilância e da abertura, no momento atual, para acolher o Reino de Deus.

Não temos tempo indefinido. A hora da conversão é agora. A oferta da salvação é uma realidade muito séria, diante da qual urge tomar uma decisão imediatamente. E não esqueçamos que, em definitivo, é a própria pessoa quem se julga, à medida que se fecha à proposta salvífica de Jesus Cristo (cf. Jo 3, 16-21)13.


 

O REINO É FUTURO E SIMULTANEAMENTE PRESENTE

Jesus apresenta o Reino freqüentemente no futuro, no final dos tempos: "Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui não provarão a morte, sem antes terem visto o Reino de Deus chegar com poder". (Mc 9,1).


Mas, por outro lado, Jesus proclama a grande novidade de que o Reino irrompe e atua já, agora, hoje, nesta nossa história: "Se expulso, no entanto, pelo Espírito de Deus, é porque já chegou até vós o Reino de Deus"(Mt 12,28).

O Reino já está no meio de nós. É preciso, no entanto, acrescentar que existe uma íntima relação entre a atuação do Reino de Deus hoje, no presente, e o Reino na plenitude futura. Esta vinculação está na origem da conhecida tensão entre o "já" (atuação do Reino na ambigüidade de nossa história) e o "ainda não" (o Reino na plenitude futura), tensão essa que faz parte, de maneira básica, da existência histórica cristã.


 

COMO ATUA HOJE O REINO DE DEUS

Como será a plenitude futura do Reino?

Mal podemos imaginar, uma vez que a promessa de Deus vai muito além de nossas expectativas e de nossos sonhos mais audaciosos. Sabemos, contudo, que a participação nesta plenitude está intimamente relacionada à vivência atual do Reino de Deus, na limitação e na ambigüidade de nossa vida e de nossa história.

É fundamental tomar consciência de como atua hoje o Reino de Deus. É neste mundo e nesta história que somos chamados a responder à interpelação do Reino de Deus.

O próprio Jesus mostra-nos como se realiza a atuação do Reino de Deus. A explicação é dada de maneira simples, profunda e cheia de simbolismos, por meio das conhecidas parábolas do Reino (cf. Mt 13)16.

a) Mt 13, 4-8 e 18-23: parábola do semeador

A explicação dada por Jesus a respeito dos diferentes tipos de terreno que recebem a semente do Reino é bastante conhecida. O que nem sempre fica evidente na leitura dessa parábola é outra indicação prática que ela também contém: semeando hoje em terra apropriada haverá colheita. A palavra de Jesus é a semente do Reino. Agora é tempo de semear, não chegou ainda o tempo da colheita. Somos convidados a colaborar com Jesus no trabalho de lançar a semente do Reino. A advertência de Jesus ressoa claramente: cuidado para não confundir o tempo de semear com o tempo de colher! Muita frustração pastoral seria evitada se prestássemos mais atenção a essa observação de Jesus17.


 

b) Mt 13, 24-30 e 36-43: parábola do joio; Mt 13, 47-50: parábola da rede.

O Reino já está chegando, na medida em que a boa semente é semeada e a rede lançada. Na ambigüidade da história, a semente boa coexiste com o joio. A separação só será realizada no final, no tempo da colheita. Assim também ocorrerá com os peixes: só serão separados, os bons e os que não prestam, quando a rede fora arrastada para a praia. Essa duas parábolas basicamente ensinam que é necessário, antes de tudo, saber assumir a verdade de nossa ambigüidade radical: boa semente e joio, peixes bons e peixes ruins, luz e sombra; ou seja, o bem e o mal coexistem em nosso coração. Isso se pode afirmar também a respeito das comunidades eclesiais, da Igreja como um todo e da história humana em geral. Não existe comunidade perfeita nem pessoas perfeitas. E não se pode dizer que os santos vivenciaram com perfeição o amor a Deus e ao próximo. Precisamente eles, mais do que ninguém, tinham consciência de sua imperfeição, da presença do "velho" em sua própria vida.

A constatação de nossa ambigüidade radical não deve ser compreendida como um convite à passividade ou à resignação. Ao contrário, constitui uma interpelação para que apostemos no novo, na boa semente, mas tendo sempre presente a realidade do joio, do velho, da tendência ao fechamento no próprio "eu". O desafio a cada um de nós consiste em apostar no novo, colocando a energia a serviço do crescimento da semente do Reino, mas cuidando, simultaneamente, para que o joio, o velho, atrapalhe o mínimo possível. Podemos afirmar que

é próprio da pessoa amadurecida saber assumir a ambigüidade da própria existência e da existência dos outros.

c) Mt 13, 31-33: parábolas do grão de mostarda e do fermento

Nestas duas parábolas, Jesus oferece-nos novas indicações sobre a atuação do Reino de Deus. Discrição, ocultação e até mesmo fracasso acompanham a chegada e a atuação do Reino de Deus no tempo atual. Tudo isso aparece bem claramente na vida do próprio Jesus. As pessoas atingidas pelo seu amor, pela sua dedicação e pelas curas constituíam uma pequena minoria entre a imensa multidão de sofredores que havia no Império Romano. Em termos quantitativos, a atividade de Jesus não nos parece muito significativa. Mas foi por meio dessa atividade que aconteceu a atuação do Reino de Deus, que o "qualitativamente" novo foi se desenvolvendo.

A ocultação, a discrição e freqüentemente o sofrimento fazem parte do trabalho evangelizador desenvolvido pelas comunidades eclesiais e pelos cristãos. E quanta frustração sobrevém, justamente porque esta realidade do Reino, no mundo atual, não é suficientemente assumida. O triunfalismo, a fome do extraordinário, a vontade de poder que leva à dominação dos outros são tentações constantes para o cristão e para as comunidades eclesiais.


 

BIBLIOGRAFIA

RATZINGER, J. (BENTO XVI), Jesus de Nazaré, São Paulo, Planeta, 2007.

GARCIA RUBIO, A., O Encontro com Jesus Cristo Vivo, 8 ed., São Paulo, Paulinas, 2001.

FERRARO, Pe. Benedito., Cristologia, Petropolis, Vozes, 2004.

PALAU, Pe. José Roberto., Cristologia, Instituto de Teologia e Filosofia Santa Terezinha (ITEFIST), São José dos Campos, 2009.

10 de junho de 2010

CRISTOLOGIA - OS DISCÍPULOS DE JESUS (aula 05)

INTRODUÇÃO
Jesus não quer percorrer seu caminho como um solitário: Ele é o “nós” da nova família que Ele congregou.

Jesus desde o início chama um núcleo mais íntimo e inicia sua atividade reunindo pessoas em torno de si.

Exemplo de narrativa de chamamento:

Simão, André, Tiago e João X Eliseu
E enquanto caminhava ao longo do mar da Galiléia ele viu Simão e André lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. E Jesus lhes disse: Vinde comigo! Eu farei de vós pescadores de gente. E imediatamente deixaram as redes e o seguiram. Indo um pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu e seu irmão João, consertando as redes do barco. E logo os chamou. E eles deixaram o pai Zebedeu no barco com os empregados e partiram, seguindo Jesus. (Mc 1, 16-20)

Quando ele (Elias) saiu de lá, encontrou Eliseu, o filho de Safat, lavrando com doze juntas de bois à sua frente. Elias chegou perto dele e lançou sobre ele o seu manto. Então Eliseu largou os bois e correu atrás dele, gritando: Deixa-me primeiro beijar meu pai e minha mãe e em seguida vou acompanhar-te. Elias respondeu: Vai e volta! Pois o que te fiz eu? Em seguida se levantou e seguiu Elias, pondo-se a seu serviço. (1Rs 19, 19-21)


Fala-se do nome das pessoas e do pai, sua profissão.

As pessoas são escolhidas

Em Eliseu, quem chama é Deus (símbolo do lançar o manto).

Nos discípulos, falta o símbolo. Jesus chama por sua palavra.

No caso de Jesus é imposta uma tarefa: “Farei de vós pescadores de gente.”

Eliseu se tornou servo de Elias

Em Jesus a relação se inverte:
“Eu estou no meio de vós como quem serve.” (Lc 22, 27).
“Já não vos chamo servos, mas amigos.” (Jo 15, 15)



CHAMADO
“Depois, subiu à montanha e chamou a si os que ele quis e eles foram até ele. E constituiu Doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar, e terem autoridade para expulsar os demônios” (Mc 3, 13-15)
“Naqueles dias aconteceu que Ele se retirou para o monte para rezar. E passou a noite toda em oração com Deus. Ao amanhecer, chamou os seus discípulos e deles escolheu doze” (Lc, 6,12s)


A vocação é acontecimento da oração

Ninguém “se faz” discípulo: é um acontecimento da eleição

O número doze: número simbólico das doze tribos de Israel. Os doze são um retorno às origens e uma imagem da esperança: Israel será restabelecido.

Eles são fundadores de um povo universal.
“Para que ficassem com ele, para enviá-los”
Ficar com Jesus e ser enviado se completam. Os discípulos devem aprender a estar de tal modo com Jesus, que com Ele estarão mesmo quando vão para os confins do mundo. Ficar com Ele para o conhecerem “por dentro”, em sua unidade com o Pai.

A missão: pregação e expulsar demônios.

Pregação: oferecer a todos a luz da palavra e a mensagem de Jesus. Eles anunciam o Reino de Deus.

A pregação nunca é só palavra, é também acontecimento, como Jesus, que é palavra de Deus em pessoa.

A autoridade sobre os demônios:

O mundo antigo viveu a irrupção do cristianismo como libertação do medo demoníaco que tudo dominava.
“Ainda que haja alguns que sejam chamados deuses, quer no céu quer na terra, existindo assim muitos deuses e muitos senhores, para nós não há mais do que só Deus, o Pai de quem tudo procede e para quem nós existimos; e um só senhor, Jesus Cristo, por meio do qual todas as coisas existem e nós igualmente existimos” (1 Cor 8, 5s)



SEGUIMENTO
O seguimento implica perigos e gera conflitos:
“E quem não toma a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo” (Mt 10, 38)

Cruz é hostilidade, desprezo, restrições, sofrimento.
“Aquele que quiser salvar sua vida, a perderá; mas o que perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8,35)

Quem acha que pode realizar-se com auxílio de falsas seguranças e metas egoísticas, não encontra o sentido da vida, que está em estruturar sua vida e opções no seguir Jesus e voltar-se para Ele.


O ESTILO DE VIDA DE JESUS E DOS SEUS DISCÍPULOS
Jesus viveu sua vida dentro de uma comunidade dos que chamou para o seguirem.

A comunidade caminhava de um lado para outro, sem lugar fixo, principalmente na Galiléia.
“Não leveis para a viagem, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro; tampouco tenhais duas túnicas” (Lc 9, 3)

Os discípulos inauguram uma nova ordem, que não é mais a da propriedade, do lucro, do desprezo pelas pessoas. Seu estilo de vida é sinal do Reino, em que se vive na entrega a Deus.

Eles vivendo sem recursos e dependendo da ajuda dos outros são uma ilustração do domínio de Deus anunciado por Jesus e por eles.

Sem recursos eles sabiam-se entregues a esse Deus que estava prestes a estabelecer seu domínio.

Jesus viveu celibatário, algo chocante, porém não inédito: em Qumram os monges também o eram.

O celibato não é desprezo pela família ou pelo sexo, nem mesmo é um ideal ascético, mas é para viver indivisamente e com todas as forças poder atuar em favor do Reino. Ele se dá para todas as pessoas, principalmente aquelas por quem ninguém se apaixona.

Jesus é absolutamente livre. Vai a festas, come, bebe. É insultado como “comilão e beberrão” (Mt 11, 19).

Principalmente, dirige-se aos pobres: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres.” (Lc 4, 18a)

Quem são os pobres para Jesus?

No Antigo Testamento, na época da monarquia, separaram-se as classes sociais. Os profetas denunciaram esta situação e proclamaram Deus o protetor dos pobres. O pobre é aquele que entrega sua causa a Deus.

O pobre é o que mantém o coração aberto para a mensagem e a salvação de Deus.

Jesus condena a riqueza por dois motivos básicos: ela leva facilmente a uma falsa segurança e leva também à idolatria.

A riqueza não pode ser o objetivo prioritário da vida humana: o desapego deve ser parte fundamental desta atitude.

O desapego só é real se expresso também na partilha, no serviço aos pobres e no compromisso contra as injustiças.

Jesus freqüenta casa de pecadores públicos, convive com possessos, epiléticos, devedores, desprezados, marginalizados, fala com mulheres e com crianças, toca nos impuros (leprosos, cegos, doentes...)

Jesus vive no meio daqueles que não conseguem realizar plenamente suas vidas e têm necessidade de ajuda.


OS DISCÍPULOS, AS DISCÍPULAS, OS DOZE
O mais conhecido grupo de discípulos de Jesus é o grupo dos doze, chamados em Mateus de discípulos ou de apóstolos. Nos escritos de Lucas firma-se o conceito dos doze apóstolos.

Quatro listas de nomes: Mc 3, 16-19; Mt 10, 2-4; Lc 6, 14-16, At 1, 13.

Todas as listas começam com Simão Pedro e terminam com Judas Iscariotes.
Pedro significa predominantemente pedra, pedra preciosa, rochedo.

Os Evangelhos deixam transparecer o papel de Simão Pedro como porta-voz do grupo.

Os apóstolos constituíram um grupo heterogêneo em sua origem, sua profissão, seu temperamento.

Todos eles eram judeus crentes e observantes, que esperavam a salvação de Israel, daí a dificuldade de introduzi-los no novo caminho misterioso de Jesus, o Servo Sofredor.

Nesta diversidade eles corporizam a Igreja de todos os tempos, e a dificuldade de sua missão.

No seguimento de Jesus encontramos também mulheres. Várias delas são citadas nominalmente: Maria Madalena, Joana, Suzana, etc.

Marcos não as denomina discípulas, mas as caracteriza como tais:
“Elas seguiam e serviam a Jesus quando estava na Galiléia. Havia também muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém”.(Mc 15, 40s)

Jesus, ao aceitar mulheres entre os seus discípulos, fazia algo escandaloso aos olhos de seus conterrâneos. No rabinato judaico era inconcebível que fossem encontradas mulheres como discípulas.

Jesus, assim, alivia a posição das mulheres, que eram oprimidas na sociedade, e cria condições para restaurar sua dignidade humana.


O DISCIPULADO DE JESUS HOJE
“Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 31b-32)

7 de junho de 2010

CRISTOLOGIA - A ORAÇÃO DO SENHOR (aula 04)

“As palavras do Pai-Nosso são instruções para a oração interior, representam orientações fundamentais do nosso ser, querem formar-nos segundo a imagem do Filho. O significado do Pai-Nosso vai além de uma comunicação de palavras de oração. Ele quer formar o nosso ser, exercitar-nos no modo de pensar sobre Jesus.” (Papa Bento XVI)

No evangelho de Mateus, uma curta catequese sobre a oração precede a oração do “Pai-Nosso”, a qual quer, sobretudo, nos prevenir contra as formas falsas de oração. A oração não deve ser exposição perante as pessoas; ela exige discrição, que é essencial para uma relação de amor. O amor de Deus por cada um de nós é totalmente pessoal e traz em si este mistério da unicidade, que não deve ser divulgado aos homens.

Esta discrição essencial da oração não exclui a oração em comum: o “Pai-Nosso” é, como o próprio nome indica, uma oração na primeira pessoa do plural, e somente neste estar com o “nós” dos filhos de Deus é que podemos absolutamente ultrapassar as fronteiras deste mundo e chegar a Deus. Mas este “nós” desperta então o fundo mais íntimo da minha pessoa; na oração devem compenetrar-se sempre este elemento totalmente pessoal e o elemento comunitário.

A relação com Deus deve estar presente no mais íntimo do nosso ser. Para que isso aconteça, é necessário que esta relação seja sempre desperta e que sejam sempre a ela referidos as coisas de cada dia. Haveremos de rezar tanto melhor quanto mais a orientação para Deus estiver no mais íntimo de nosso ser. Assim teremos muito mais forças para suportar a dor, como também para compreendermos as outras pessoas e estarmos mais abertos a elas. Esta presença silenciosa de Deus na base do nosso pensamento – impregnando nossa consciência – é o que chamamos de “oração permanente”.

"Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos(Lc 11,1). E em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental. S. Lucas traz um texto breve (de cinco pedidos); S. Mateus, uma versão mais desenvolvida (uma locução e sete pedidos). A tradição litúrgica da Igreja conservou o texto de S. Mateus:

Locução:
Pai nosso que estais nos céus,

Os três primeiros pedidos tratam de assuntos de Deus neste mundo. (O Amor de Deus e do próximo )

santificado seja o vosso nome;

venha a nós o vosso reino;

seja feita a vossa vontade,
assim na terra como no céu;


Nos quatro seguintes, tratam das nossas esperanças, necessidades e indigências. (Instruções sobre o caminho do amor e de conversão.)

pão nosso de cada dia nos dai hoje;

perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido;

e não nos deixeis cair em tentação.

mas livrai-nos do mal.


PAI-NOSSO QUE ESTAIS NOS CÉUS
PAI
A humildade nos faz reconhecer que "ninguém conhece o Pai senão o Filho ele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11 ,27. A purificação do coração diz respeito às imagens paternas ou maternas oriundas de nossa história pessoal e cultural e que influenciam nossa relação com Deus. Deus nosso Pai transcende as categorias do mundo criado. Transpor para Ele, ou contra Ele, nossas idéias neste campo seria fabricar ídolos, para adorar ou para demolir. Orar ao Pai é entrar em seu mistério, tal qual Ele é, e tal como o Filho no-lo revelou.

A expressão "Deus Pai" nunca fora revelada a ninguém. Quando o próprio Moisés perguntou a Deus quem Ele era, ouviu outro nome. A nós este nome foi revelado no Filho, pois este nome novo implica o nome novo de Pai.

Podemos invocar a Deus como "Pai", porque Ele nos foi revelado por seu Filho feito homem e porque seu Espírito no-lo faz conhecer. Aquilo que o homem não pode conceber nem as potências angélicas podem entrever, isto é, a relação pessoal do Filho com o Pai, eis que o Espírito do Filho nos faz participar nela (nessa relação pessoal), nós, que cremos que Jesus é o Cristo e (cremos) que somos nascidos de Deus.

Quando rezamos ao Pai, estamos em comunhão com Ele e com seu Filho, Jesus Cristo. E então que o conhecemos e o reconhecemos num maravilhamento sempre novo. A primeira palavra da Oração do Senhor é uma bênção de adoração, antes de ser uma súplica. Pois a Glória de Deus é que nós o reconheçamos como "Pai", Deus verdadeiro. Rendemo-lhe graças por nos ter revelado seu Nome, por nos ter concedido crer nele e por sermos habitados por sua Presença.

O dom de Deus é Deus mesmo.

O bem que Ele nos dá é Ele mesmo.

Deus quer se oferecer a nós .

Deus é nosso Pai, pois é nosso Criador.

Não somos, ainda, de um modo acabado filhos de Deus, mas devemos tornar-nos e sermos sempre mais por meio da nossa mais profunda comunhão com Jesus.

NOSSO
Nosso, exprime uma relação totalmente nova com Deus. Sempre que rezamos ao Pai, O adoramos e O glorificamo com o Filho e o Espírito Santo. Em Cristo, somos o seu Povo e Ele é o nosso Deus, desde agora e para a eternidade. Dizemos, com efeito, Pai nosso, porque a Igreja de Cristo é a comunhão duma multidão de irmãos que têm “um só coração e uma só alma” At 4,32).

Só Jesus é que podia com pleno direito dizer “meu Pai”, porque só Ele é realmente o Filho unigênito de Deus, da mesma essência que o Pai.
Em nosso caso, só podemos chamar a Deus de “Pai” se vivermos em comunhão com Cristo.

A palavra NOSSO contém uma enorme pretensão.
Ela exige de nós que deixemos a clausura do nosso eu. Ela exige que façamos parte da comunidade dos outros filhos de Deus. Ela exige que nós aceitemos o outro, abrindo para eles nosso ouvido e nosso coração.

QUE ESTAIS NOS CÉUS
Com estas palavras não deslocamos Deus Pai para o espaço sideral, mas afirmamos que nós, que temos pais tão diferentes, vivemos todos, no entanto, de um único Pai, que é a medida e a origem de toda paternidade: “Eu dobro os meus joelhos diante do Pai, do qual deriva toda a paternidade no céu e na terra” (Ef 3, 14-15).

A paternidade humana cria separações e a paternidade divina une.
Céu significa a realidade divina, de onde todos nós viemos e para onde todos nós deveremos retornar.

SANTIFICADO SEJA O VOSSO NOME
Deus produz a relação entre ele e nós. Ele se torna invocável. Ele entra em relação conosco e nos permite estar em relação com ele. Mas isso também significa: Deus se entrega de algum modo ao nosso mundo humano. Ele é invocável e por isso também vulnerável. Ele assume o risco da relação, de estar conosco.

Ao ser revelado o nome de Deus pode ser abusado, pode ser instrumentalizado para os nossos objetivos e, desse modo, é deformada a verdadeira imagem de Deus. Quanto mais ele se entrega em nossas mãos, tanto mais pode ser a sua luz escurecida; quanto mais próximo estiver, tanto mais o nosso abuso pode torná-lo irreconhecível.

Ao pedirmos, santificado seja o vosso nome, suplicamos que Deus tome na mão a santificação de seu nome, que Ele proteja o mistério da sua invocabilidade para nós; e que sempre, ele mesmo, vá para fora da nossa desfiguração.

VENHA A NÓS O VOSSO REINO
Com este pedido reconhecemos, antes de mais nada, o primado de Deus: onde ele não está, nada pode ser bom. Onde Deus não está, o ser humano cria sua própria ruína e destrói o mundo. Neste sentido, Jesus disse: “(...) em primeiro lugar busquem o reino de Deus e a sua justiça, e tudo mais vos será dado em acréscimo” (Mt 6, 33). Com esta expressão é estabelecida uma ordem de prioridades para a ação humana, para a nossa atitude no cotidiano.

Reino de Deus quer dizer: Soberania de Deus.

A vida deste Reino é Cristo, que continua nos seus.

O Reino começa para aqueles que foram tocados e transformados pela força de vida de Cristo.

SEJA FEITA A VOSSA VONTADE ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU
A vontade do Pai é que “todos os homens sejam salvos” (1 Tm 2,3).

Para isso é que Jesus veio: para realizar perfeitamente a Vontade salvífica do Pai. Nós pedimos a Deus Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, a exemplo de Maria Santíssima e dos Santos. Pedimos que o seu desígnio de benevolência se realize plenamente na terra como no céu. É mediante a oração que podemos “discernir a vontade de Deus” (Rm 12,2) e obter a “perseverança para a cumprir" (Hb 10,36).

Neste pedido duas coisas se tornam claras:
Existe uma vontade de Deus conosco e para nós, que deve tornar-se a medida do nosso querer e do nosso ser.
A essência do céu consiste em que lá a vontade de Deus acontece sempre, ou seja: onde a vontade de Deus acontece, aí é o céu. A terra torna-se céu à medida que, a vontade de Deus nela acontece.

Provação:
No Getsêmani (Jardim da Oliveiras), : “Meu Pai, se possível, que este cálice se afaste de mim. Contudo, não seja feito como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26, 39b). Jesus trava um combate entre duas vontades:
Vontade humana: “(..se possível, que este cálice se afaste de mim ..)”.
Vontade divina: “(...não seja feito como eu quero, mas como tu queres”.

O sofrimento, em si, nada tem de bom. Mas há momentos em nossas vidas em que o sofrimento continua presente, mesmo quando foi feito tudo para curá-lo, mesmo quando o recusamos com todas as forças.

Nesse caso, é preciso agir como Jesus, no Getsêmani: minha vontade humana é que não haja sofrimento, que não haja morte, mas a vida me mostra que o sofrimento existe, que a morte existe, e em lugar de simplesmente suportar, eu quero aderir com todo o meu ser ao mistério do sofrimento: “(...) não seja feito como eu quero, mas como tu queres”.

Fazer a vontade de Deus não é somente realizar a travessia dos sofrimentos, mas sobretudo, despertar para uma vontade mais alta através das provações de nossa existência. A vontade de Deus é a nossa felicidade.

O sinal de que fazemos a vontade de Deus é o prazer que temos ao fazer aquilo que nos é dado fazer.

Quando uma coisa é bem feita, mesmo se é difícil, há ali uma qualidade de prazer que não é somente um prazer físico ou psíquico, mas é um “prazer espiritual”. Neste momento estaremos vivendo esta petição do “Pai-Nosso”. Que a vontade de Deus se realize. Mesmo através das provações, que tua vontade se realize sempre.

O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE
O quarto pedido do “Pai-Nosso” aparece como o mais humano de todos: o Senhor conhece as nossas necessidades aqui na terra. Ele que diz aos seus discípulos: “Não vos preocupeis com a vossa vida nem com o que haveis de comer” (Mt 6, 25), convida-nos a pedirmos o nosso alimento e assim transpor para Deus as nossas preocupações.

E trata-se do “nosso pão”. Também aqui rezamos na comunidade dos discípulos, dos filhos de Deus; por isso mesmo, ninguém deve, a partir daí, pensar apenas em si mesmo. Pedimos o nosso pão – portanto, também o pão para os outros.

Quem tem pão a mais é chamado a partilhar. Este pedido do “Pai-Nosso” está relacionado a outro pedido do Senhor: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37).

PERDOAI AS NOSSAS OFENSAS ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO
Com este pedido o Senhor nos diz: Deus pode perdoar, porque ama o ser humano; porém, o perdão só pode penetrar, ser realmente eficaz, em quem for também capaz de perdoar.

O que é propriamente perdoar? O perdão é muito mais do que ignorar, mais do que querer simplesmente esquecer. O perdão é exigente: aquele que perdoa deve em si vencer o mal que lhe aconteceu, ao mesmo tempo queimá-lo interiormente, e assim, se renovar, de tal modo, que então acolha também o outro, aquele que o ofendeu.

O perdão que concedemos a quem nos ofendeu deve preceder o perdão que pedimos a Deus. No momento da oração se pressupõe que o orante já perdoou aquele que o ofendeu.

É absolutamente incorreto concluir que o perdão que nós damos condiciona o perdão divino, segundo uma lógica retributiva, pois o orante não se apresenta a Deus como uma pessoa auto-suficiente. Ele sabe que seus “pecados” são perdoados gratuitamente por Deus; sabe também que Deus não aceita uma oração hipócrita, não sustentada por uma vivência verdadeira; por fim, sabe que, se foi capaz de dar o perdão ao próximo, é porque Deus, tendo-lhe perdoado seus pecados, lhe concedeu a “graça” para perdoar aqueles que o ofenderam.

NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO
A tentação vem do demônio, e visa destruir a nossa fé, pois é sempre solicitação ativa ao pecado. É diferente da provação. Para se tornar mais maduro, o ser humano precisa de provação, de purificações, para crescer na comunhão com o Senhor. A provação designa algo bom e positivo em si, cujo objetivo é permitir que o cristão se exercite com maior empenho para o crescimento das virtudes, como: a obediência, a perseverança, a constância, a fidelidade, entre tantas outras (cf. Ex 16, 4; 20, 20; Dt 8, 2; Sl 26, 2; 1Mc 2, 52; Sb 3, 4-6; Jo 6, 6; Hb 11, 17.37; Tg 1, 2; 1Pd 1, 6; 4, 12-13).

A tentação, embora permitida por Deus, vem diretamente do diabo, para nos destruir. Quando alguém vence a tentação passa por um processo extremamente doloroso de purificação. Aqui podemos pensar em Santo Antão, no deserto; em Santa Teresinha, no mundo piedoso do seu Carmelo; e, mais recentemente, em Madre Teresa de Calcutá.

No sexto pedido do “Pai-Nosso” deve estar contida, por um lado, a disponibilidade para tomarmos sobre nós a carga na provação, que nos está atribuída. Mas por outro lado, trata-se precisamente do pedido para que Deus não nos atribua mais do que aquilo que podemos agüentar; que ele não nos deixe escapar das suas mãos.

MAS LIVRAI-NOS DO MAL
O último pedido do “Pai-Nosso” retoma o penúltimo e transforma-o numa proposição positiva; deste modo, ambos pedidos pertencem intimamente um ao outro. Se no penúltimo pedido domina a súplica para não dar ao mal espaço para além do suportável, no último chegamos à esperança central da nossa fé em Deus Pai. “Salvai-nos, redimi-nos, libertai-nos!” Trata-se em última instância do pedido pela salvação.

A este respeito diz São Cipriano: “Quando dizemos “livrai-nos do mal”, então nada mais resta para pedir. Quando nós alcançamos a proteção pedida contra o mal, então estamos seguros e protegidos contra tudo o que o demônio e o mundo possam realizar. Que medo poderia vir do mundo para aqueles cujo protetor no mundo é Deus”? E sta certeza deu suporte aos mártires e permitiu-lhes estarem alegres e confiantes num mundo cheio de ameaças e eles mesmos “salvos” no mais profundo de si, libertados para a verdadeira liberdade.

Com este último pedido, regressamos aos três primeiros: uma vez que pedimos a libertação do poder do mal, pedimos em última instância o Reino de Deus, a nossa comunhão com a sua vontade e santificação de seu nome. Os orantes de todos os tempos entenderam este pedido de um modo ainda mais vasto. Nas aflições do mundo pediram a Deus que pusesse um termo às desgraças que devastam a humanidade e a nossa vida.

BIBLIOGRAFIA
RATZINGER, J. (BENTO XVI), Jesus de Nazaré, São Paulo, Planeta, 2007.